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Tragédia de Alcafache, 40 anos depois: uma memória que preferia não ter

  Era o dia 11 de setembro de 1985, por volta das dezanove e trinta. Eu estava a trabalhar na sede do PS em Viseu, na Rua 5 de Outubro, na preparação da campanha eleitoral para as legislativas que iriam ter lugar no dia 6 de outubro. Eu era o sétimo candidato a deputado na lista do PS pelo círculo de Viseu, que era liderada por Armando Lopes (ver nota 1). Mas esta crónica não é para vos falar de memórias partidárias. É para vos falar da minha memória do mais grave acidente ferroviário alguma vez ocorrido em Portugal. Lá estávamos, na sede do PS, na sala da secretaria, quando o silvo estridente de uma ambulância nos ecoou nos tímpanos. Antes de termos tempo de perguntar fosse o que fosse, logo outra se anunciou, e mais outra e muitas mais… Fomos à janela e vimos que eram dos bombeiros de Canas, de Nelas, de Mangualde, de Carregal… de todo o lado. O que se terá passado? Sim, soubemos pouco depois que tinha ocorrido um choque de comboios na linha da Beira Alta. Só isso. Ficámo...

Memórias das Caldas da Cavaca

  Naquele tempo as termas estavam na moda e eram muitas as pessoas que não passavam um ano sem ir a banhos. Bebiam-se as águas e faziam-se os demais tratamentos que os médicos receitavam: inalações, gargarejos, lavagens específicas do corpo e banhos diversos. A temporada escolhida pelas pessoas que viviam da atividade agrícola era normalmente a segunda quinzena de agosto ou a primeira de setembro, épocas em que os trabalhos na terra davam alguma folga. Para as pessoas da minha aldeia, Rãs , as termas que estavam mais à mão eram as Caldas da Cavaca. Localizam-se no concelho de Aguiar da Beira e pertenciam ao senhor Laires, que nos diziam ser muito rico e que residia em Lisboa. Foi ali, aproveitando as características químicas da água (idênticas às demais existentes ainda hoje na região Viseu Dão Lafões), que aquele empresário criou aquela unidade termal, que ao longo do tempo (até hoje) passou por diversas vicissitudes. Não se tratava de um empreendimento de grande dimensão ...

Sátão: Feira dos Vinte

  Foto: Rua Dr. Hilário Pereira, 20 de agosto de 1987 Era popularmente conhecida por Feira dos Vinte, a feira anual que se realizava em Sátão no dia 20 de agosto, dia de São Bernardo, feriado municipal desde 1969. Era uma feira que atraía à vila de Sátão milhares de pessoas, vindas das povoações do concelho e dos envolventes. Era miúdo e este dia, o da feira de ano, era sempre esperado com enorme ansiedade. Era um dia bem diferente, que fugia das duras rotinas dos trabalhos agrícolas de verão. Bem me lembro do concurso pecuário e da feira do gado, onde os criadores e os comerciantes da região vinham mostrar, vender e comprar os “tratores” da época, as vacas com que iriam lavrar as terras para se semearem os nabos e plantar as couves do Natal e acarretar o milho para as lajes e as uvas para os lagares, em dornas de madeira. Bem me lembro deste dia, em que o cheiro do frango na brasa e as tiras de carne entremeada nos abriam o apetite logo pela manhã, mas tais iguarias só as ...

Crónica em três atos | Ato 2: Do respeito pelas opções dos outros

Aqui: Para ler o ATO 1 -  Do que fomos, do que somos Olho, daqui. Deste hoje. Deste agora complexo. Que não gosto de ver simplificado com propostas básicas. Com olhares maniqueístas. Preto ou branco. De absolutas certezas. Vejo um povo. Uma nação. Um país que se move. Envolvido nas suas circunstâncias. E a não poder descurar tudo aquilo que o envolve. Nos territórios mais próximos e nos espaços geopolíticos mais distantes. E tudo isto acontece num tempo controverso. Em que tudo é controvertido. Discutido. Contestado. Sob pontos de vista respeitáveis. Muito radicalizados. Mais uns dos que outros. Ao olhar de cada um de nós. Ao nosso. Olhar (de)formado pelas nossas idiossincrasias. Biológicas. Sociais. Culturais. Antropológicas. Geográficas. E sei lá mais o quê. Somos testemunhas de um tempo, este, em que cada palavra, cada frase, cada artigo, uma qualquer lei é pelejada, acareada e dirimida em contendas acaloradas. Com argumentos. Os mais diversos. Hoje somos agentes, atores de um m...

A propósito de comboios na Beira Alta: Cansados de esperanças vãs.

  A 3 de agosto de 1882 foi dia grande para as gentes da Beira, com a inauguração da linha ferroviária que haveria de vir a ligar Portugal à Europa a partir de Vilar Formoso e que tomou o nome de Linha da Beira Alta. Primeiro desde a Pampilhosa e depois desde a Figueira Foz. E uma grande obra teria de ter, como teve, nesse longínquo ano, as mais gradas figuras do país. Precisamente o rei D. Luís e a sua família mais chegada para além dos ministros e conselheiros. O povo, esse, saiu à rua para aclamar e aplaudir. Porém, volvidos que são todos estes anos, faz hoje 142, aqui estamos nós, depois de tantos prometimentos, ainda sem a reabertura de uma linha que nos foi dito que era para estar requalificada e em pleno funcionamento já há muito tempo. Aqui estão os cidadãos de toda esta vasta região, entregues a indecisões, a intermitências, a retóricas ao sabor de todo o tipo de eleitoralismos. De inconseguimento em inconseguimento , os portugueses em geral e os desta alargada beir...

Tradições de São João: Balões e fogueiras de rosmaninhos

  A noite de São João começava sempre à tarde, com uma ida à serra para apanhar rosmaninhos. Com o carro de mão, a sachola e uma corda, lá íamos nós caminho adiante, até à corga da Raposa apanhar os rosmaninhos floridos. Depois era acamá-los no carro, amarrá-los com a corda e fazer a viagem de regresso, não sem antes bebermos água na fonte das Perdizes. À noite, o caldo e as batatas com o conduto eram deglutidos com rapidez. A rua começava a encher-se e não podíamos perder pitada. Até porque tínhamos de ir ajudar o tio Fernando a lançar o balão que todos os anos lhe ajudávamos a fazer, colando o papel vegetal com farinha triga numa estrutura de canas e arame. Na boca do balão o tio Fernando colocava uma mecha, feita de serapilheira, embebida em petróleo. Depois era colocar o balão sobre uma fogueira, para que se fosse enchendo de fumo e só então era acesa a mecha para que o ar não arrefecesse e a sua rota fosse a maior possível. Como o vento de levante era dominante o bal...

Sátão prestou uma justa homenagem a João Gomes, um virtuoso da guitarra clássica

  João Figueiredo Gomes, de 85 anos, é natural do concelho de Sátão, freguesia de Rio de Moinhos e foi, recentemente, homenageado pela sua carreira ao serviço da música portuguesa, numa parceria entre a Academia do Fado, da Canção e da Guitarra de Coimbra e o Município de Sátão. João Gomes, que aos catorze anos rumou para Lisboa – onde em fevereiro de 1957 assistiu da encosta do castelo de São Jorge à chegada da rainha Isabel II da Inglaterra no navio Royal Yacht Britannia , que ele fotografou da varanda da casa da sua tia, onde residia – levava no coração o gosto pela música. E, vai daí, no final dos anos 50, materializou essa sua paixão através da aquisição de uma viola que a sua avó acabou por financiar, pese embora as dificuldades que se viviam à época. Esse seu primeiro instrumento, que o acompanhou até à Índia, onde cumpriu o serviço militar, tinha, porém, o destino marcado. Ele, e os demais militares portugueses foram presos, em 1961, pelas forças indianas que invadiram e ...

Preferia, muito mais, ir visitá-lo a Tormes!

  Foto: Assembleia da República Preferia, muito mais, ir visitá-lo a Tormes! Sempre achei que o lugar onde devem repousar os restos mortais das mais ilustres figuras de um país é nas suas terras, tal como os demais. Onde nasceram ou se radicaram. Ou então onde cada um deles muito bem entender se essa vontade for expressamente declarada em vida. Vem isto a propósito da trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional, onde jazem, é bem verdade, muitos outros vultos das letras, da política e até da canção e do futebol. Não quero aprofundar, nesta breve crónica, os fundamentos da existência de um panteão. De um local onde se guardem os restos mortais dessas personalidades mais singulares e ímpares. Quero, isso sim, deixar expresso que, no caso em apreço, Eça contemplaria muito melhor o mundo a partir de Baião, do cemitério de Santa Cruz do Douro, a sua ‘casa’ desde 1989, depois de ter estado desde 1900, ano da sua morte, no cemitério do Alto de São João...

Códão e sincelo: duas palavras ameaçadas pelas alterações climáticas

  As palavras também morrem. Todos os dias. Em todas as latitudes e meridianos. E há duas, códão e sincelo , que, em Portugal, no Centro e no Norte, estão fortemente ameaçadas. E, assim sendo, estão a caminho do cemitério da nossa memória, onde jazem, já, muitas outras. Vem esta crónica a propósito destes tempos que vivemos, em que o tempo não se consegue acertar com as estações do ano. Em que os equinócios e os solstícios se transfiguraram. Em que os meses de novembro e de dezembro e tantos outros – todos, afinal – mudaram de conteúdo. Se reprogramaram. Na agricultura, no vestuário, no ambiente, ou seja, na vida. Será que alguém nas terras frias portuguesas tem visto o códão? Tem visto a humidade da terra congelada? Gretada e levantada sobre pilaretes de gelo? E se esse facto é uma miragem, para que nos serve a palavra que traduz essa realidade? E, então, como é que poderemos explicar, ‘analogicamente’, o que é o códão? Essa terra que rangia quando era esmagada pelas resis...

Antigamente, os defuntos lambiam os figos!

  Antigamente os defuntos lambiam os figos! Fosse qual fosse a ancestral causa, a verdade é que os jovens e os adultos mais sugestionáveis, na Beira Alta, deixavam de comer figos a partir do dia 1 de novembro. A causa era simples, os defuntos, precisamente, nessa noite, iam lambê-los, quais demónios em busca das suas presas.  De facto, já não eram muitos os figos vindimos que existiam nas figueiras, mas havia sempre algumas que exibiam alguns apetecíveis exemplares, sobretudo quando as chuvas não eram muito intensas durante o mês de outubro. Recorde-se que, por tradição, os dias 1 de novembro, Dia de Todos os Santos, e 2 de novembro, Dia dos Finados, eram dias de especiais idiossincrasias para as comunidades. Ia-se aos cemitérios, limpavam-se as campas e sepulturas dos familiares já falecidos, onde se colocavam arranjos florais feitos, essencialmente, com crisântemos e carvalhinhas – rituais que ainda hoje se cumprem – e, portanto, era um tempo de algum recolhimento e de l...

Morreu João Simão da Silva, Marco Paulo não!

  Morreu o João Simão da Silva, o Marco Paulo não morreráenquanto a nossa memória não nos trair . Alentejano, nascido no Portugal profundo, o João Simão ganhou notoriedade e foi consagrado como Marco Paulo, seu nome artístico, nos palcos de um país recém saído de uma ditadura. Bem o guardo dos finais dos anos 70, quando, verdadeiramente, Marco Paulo ganhou dimensão nacional. . Bem me lembro de vender na Feira Franca de São Mateus, em Viseu, no stand da Discoteca Ferrão, os singles e as cassetes dos seus primeiros grandes êxitos “Ninguém, ninguém” e “Canção Proibida”. Bem me lembro da gritaria dos seus fãs quando ele subia aos palcos de um país que se ajustava a um novo regime.  Bem me lembro do sucesso que foi, logo depois, no início dos anos 80, a canção “Eu tenho dois amores”. Bem me lembro, também, do microfone a saltitar de mão em mão. Bem me lembro, igualmente da sua imagem de marca, o seu cabelo em carapinha. Bem me lembro, com certeza, do quanto ele era amad...

A História repete-se ciclicamente

A História repete-se ciclicamente por mais voltas que se deem e podem ser sempre muitas. Estamos perante uma inexorável fatalidade, mas que nunca se antecipa completamente em todos os seus impactes. Não há sociólogos, historiadores, filósofos que apreendam e antecipem na totalidade dos seus efeitos. Podem mudar as geografias, as nacionalidades, as origens étnicas ou religiosas, enfim, pode mudar muita coisa, mas os fluxos sociais, económicos, políticos, ou outros, polarizam-se, sempre, em volta das mesmas atratividades de base. E as entropias nas comunidades e nos territórios, apesar de diferentes, tendem sempre a direcionar-se para o caos. Os políticos do poder, esses, vão resistindo e negando, até ao limite, as evidências que o povo já sente na pele. E os slogans que vão debitando e são replicados pelos tifosi, quais megafones ambulantes, vão amplificando pelas ruas e quarteirões das polis, deixam, paulatinamente, de ser ouvidos pela turba cada vez mais ruidosa. O resultado é...

Licença da padaria de Rãs remonta a 1947

  Fonte: Google O pedido de licença, ao Ministério da Economia, para a abertura de uma padaria de fabrico de pão, de farinha de trigo espoada, em Rãs, freguesia de Romãs, concelho de Sátão, remonta a 1947, a 24 de fevereiro. Na altura, o pedido foi efetuado em nome de Padarias Progresso de Penalva do Castelo, Lda., uma empresa do concelho vizinho de Penalva do Castelo. Nesta padaria, que foi tendo, posteriormente, outros proprietários e que ainda hoje funciona, também com a vertente de café, recordo com muito agrado duas pessoas, duas referências de trabalho de grande qualidade a nível da panificação. Trata-se dos saudosos Domingos Simões e Arlindo Giroto. Foi com eles que a padaria renasceu nos anos 70, depois de muitos anos em que esteve encerrada e foi com eles que ela viveu tempos áureos, era eu um jovem. Bem me lembro de inúmeras patuscadas que lá fazíamos, sobretudo nos tempos dos enchidos e dos cantares de janeiras e de reis. Atualmente, em Rãs, ainda pontifica est...

Os campos de margaças são uma das maravilhas de março

  Os campos de margaças são uma das maravilhas de março No mês de março, mês do equinócio da primavera, época em que a natureza se começa a cobrir de flores, os campos da Beira Alta enchem-se de margaças, cobrem-se de branco. É o prenúncio do amanho das terras para as culturas de verão. Era eu miúdo e bem me lembro de que era nesta época que se começavam a lavrar os terrenos e toda aquela altura se finava, acabando enterrada nas leivas sulcadas pelos arados puxados por indolentes vacas castanhas. Era o sacrifício da beleza das margaças em benefício da fecundação da terra que, em compensação, devolvia mais e melhores colheitas no final do verão. Pois bem, o ciclo, esse movimento perpétuo (até um dia!), continua e foi com especial gosto que, neste mês de março de 2024, revi a alvura desses campos de outrora, com as margaças a conferirem aos terrenos da minha aldeia a alvura da neve, que, entretanto, deixou de ali assentar arraiais. Brevemente as charruas, agora dos tratores, of...

Sabe como se ouviam as emissões proibidas de rádio antes do 25 de abril?

  Sabe como se ouviam as emissões de rádio proibidas antes do 25 de abril. Eram outros tempos. Tempos em que só podíamos ouvir as notícias que eram transmitidas pelas emissoras oficiais do regime de Salazar e Caetano. Antes do 25 de Abril de 1974, ouvir a BBC, a Voz da Alemanha, a Rádio Voz da Liberdade, ou a Rádio Portugal Livre era crime político. Eram emissoras que emitiam em onda curta, dirigidas a Portugal, e que tinham a polícia política sempre no encalço de quem emitia e dos ouvintes. E estes, que tinham os ouvidos colados aos recetores, sabendo que a polícia estava sempre à espreita, colocavam um copo de água em cima do aparelho, pois dizia-se que com esse expediente a PIDE não detetaria as ondas da emissão. Porém, a questão do copo de água era um mito. Os detetores com capacidade para determinar a direção das ondas eletromagnéticas (radiogoniómetros) não eram influenciados por tal expediente. Portanto, se muitos não foram apanhados quando sintonizavam nos seus aparelh...

Gosto da relatividade!

  Gosto da relatividade! Que estes tempos da hipermodernidade são muito conturbados e andam muitos agitados já todos nós sabemos. Os nervos andam à flor da pele. Todos nós nos confrontamos com respostas impulsivas. Com decisões sem qualquer racional. Com ataques de caráter. Com julgamentos sumaríssimos. Com condenações efetuadas no  largo do pelourinho . Há sempre aqueles que colocam tudo em causa. Que tudo questionam. Que tudo querem reverter. Que tudo querem reavaliar. Há assim como que uma onda de impulsos justicialistas a pairar no ar. A medida? O padrão de medida? Esse é o atual. O de agora. Querem medir o ontem com as ferramentas atuais e com o seu critério. Com os princípios de agora. De preferência, à luz dos seus valores. Querem efetuar a ablução do mundo com a sua água benta. São estátuas de homens e mulheres que devem ser decepadas. São pinturas que devem ser queimadas. São símbolos que devem ser renegados. São livros que devem ser reescritos. São nomenclatu...

Os insondáveis desígnios da vida e da morte

  Chamem-lhe fatalismo ou aquilo que quiserem. Chamam-lhe destino ou lá o que for. Chamem-lhe tudo o que vos aprouver. Eu fico-me pela crua realidade de me ter de confrontar com a morte de um amigo. Com a partida de alguém que nos tocava na intimidade do nosso querer estar com ele. Sempre com uma alegria forte. Feita de palavras nuas. De sílabas soletradas ao som das cascatas de água cristalina do Montemuro. Da sua Gralheira amada. Do seu refúgio feito de pedras soltas. Assim como que um desvão onde partilhou com os amigos os últimos prazeres terrenos. Fico-me aqui, parado. Sem saber qual caminho seguir. Qual rumo trilhar. Sem conhecer as víboras da sua serra, de que tanto nos falava. A força simbólica e milagrosa da sua cabeça, que as ervanárias e as boticas de Lisboa e do Porto compravam e vendiam a preços proibidos. Fico-me aqui sem nunca mais poder saborear as suas gargalhadas limpas e abertas. As suas anedotas agridoces, ditas com a doçura da linguagem do seu povo. As su...

Os guardiões dos livros sagrados!

  Também em: Letras e Conteúdos Sempre houve, ao longo dos tempos, guardiões dos saberes, das tradições, dos regulamentos, das teorias e de todas as ritualizações sociais. Eram os guardadores de toda a percuciência e só mesmo eles se achavam capacitados para afirmar qual o último e mais ínfimo pormenor de uma qualquer teoria, como por exemplo, sobre o tom do gorjeio das aves canoras. Eram assim como que uma espécie de indivíduos ungidos pelos óleos sagrados e ineptos eram todos os demais, todos quantos ousassem alvitrar em dissenso. Hoje, tal como ontem, em bicos de pés e ataviados de soberba, continuam por aí aqueles que sobem aos púlpitos dos eventos, crescem para as câmaras, e se pavoneiam ante microfones para perorarem augustas palavras, as únicas, aliás, que são as fidelíssimas reproduções do pensamento mais refinado daquele filósofo, escritor ou artista. Quais apóstolos de uma religião que só eles sabem desvendar, que só eles têm erudição para desnudar perante nós, h...

A propósito de camas quentes!

  Chegam em carrinhas. Durante a noite. Mochilas às costas. Rostos fechados. E vão para caves onde se deitam, a monte, em enxergas ainda quentes da fornada anterior. Fecham os olhos e são acordados, pouco depois, sem terem tido tempo de dormir. Vão às latrinas a correr. É tempo de partir. De chegarem ao trabalho prometido. De se confrontarem com a dura realidade da nova vida que não é. O tempo passa. As estratégias não. As circunstâncias mudam. Os comportamentos não. Ontem eram os emigrantes portugueses ou magrebinos acamados e enlatados em bidonvilles nos arredores de Paris, de Marselha ou nos vinhedos de Sauterns. Hoje são imigrantes indianos ou filipinos atulhados em quartos bafientos de prédios soturnos; ou de contentores abrasivos no centro de Lisboa ou do Porto; ou nas profundezas de além Douro ou no Alentejo intensivo. De ontem sobraram trabalhadores à mercê de esquemas clandestinos falados em língua estrangeira e pagos com o suor do carregamento de baldes de argam...

Crónica em três atos: emigração, Partido Socialista e leituras censuradas!

  Quinta-feira, dia 19 de abril de 1973. 1. Era manhã cedo e o sol ainda não subira a linha do horizonte, vindo dos lados da República Democrática da Alemanha e da subjugada, desde 1968, Checoslováquia. Eram seis horas e naquela manhã, como na maioria delas, um ligeiro nevoeiro de fumo das inúmeras fábricas do complexo siderúrgico do Reno e do Ruhr, com humidade à mistura, iria impedir que o português António da Silva visse o sol brilhar, esplendoroso, como acontecia na sua aldeia da Beira Alta. Vivia com tantos outros seus compatriotas nos subúrbios de Colónia e estava a iniciar os rituais de mais um dia de trabalho, longe da sua família que ficara em Portugal. Almejava ganhar algum dinheiro para ter a vida digna que a agricultura, no seu torrão natal, lhe negara. Queria muito formar os seus filhos, construir uma casa e comprar um carro para passear na velhice. Tinha cinquenta anos e não queria andar na Alemanha muito mais tempo. Saltou da cama, lavou a cara, fez a barba com...