Avançar para o conteúdo principal

Códão e sincelo: duas palavras ameaçadas pelas alterações climáticas

 


As palavras também morrem. Todos os dias. Em todas as latitudes e meridianos.

E há duas, códão e sincelo, que, em Portugal, no Centro e no Norte, estão fortemente ameaçadas. E, assim sendo, estão a caminho do cemitério da nossa memória, onde jazem, já, muitas outras.

Vem esta crónica a propósito destes tempos que vivemos, em que o tempo não se consegue acertar com as estações do ano. Em que os equinócios e os solstícios se transfiguraram. Em que os meses de novembro e de dezembro e tantos outros – todos, afinal – mudaram de conteúdo. Se reprogramaram. Na agricultura, no vestuário, no ambiente, ou seja, na vida.

Será que alguém nas terras frias portuguesas tem visto o códão? Tem visto a humidade da terra congelada? Gretada e levantada sobre pilaretes de gelo?

E se esse facto é uma miragem, para que nos serve a palavra que traduz essa realidade? E, então, como é que poderemos explicar, ‘analogicamente’, o que é o códão? Essa terra que rangia quando era esmagada pelas resistentes botas com sola de pneu, feitas pelo tio Dimas sapateiro, e bem ensebadas com banha de porco?

Ainda guardo esse som. Ainda guardo essa onomatopeia que não sei traduzir por grafemas.

E o sincelo? O que é isso de sincelo?

Essa humidade gelada que envolvia as pontas das giestas? Os ramos mais finos dos arbustos e das árvores?

E as longas estalactites de gelo em que se transformavam as pingas da água que caía dos telhados? Nos invernos bem frios, quando as temperaturas noturnas iam bem abaixo de zero?

Pois bem, também é disto que se trata, quando falamos de alterações climáticas. Quando discutimos as emissões de gases com efeito de estufa. Quando os países, hipocritamente, estabelecem metas que nunca cumprem.

Pois não, as alterações climáticas não afetam só o ambiente. Também afetam o léxico e as palavras. E, consequentemente, e em simultâneo, morrerão as palavras bem como as imagens e os sons que lhes estão associados. É uma questão de tempo!

Sim, como se vê, as alterações climáticas, esse flagelo que tantos teimam em negar, afetam muito mais do que o ambiente, afetam a essência das nossas circunstâncias. A nossa vida. Os nossos códigos linguísticos.

Acácio Pinto

Mensagens populares deste blogue

Sermos David e Rafael, acalma-nos? Não, mas ampara-nos e torna-nos mais humanos!

  As palavras, essas, estão todas ditas. Todas. Mas continua a faltar-nos, a faltar-me, a compreensão. Uma explicação que seja. Só uma, para tão cruel desenlace. Da antiguidade até ao agora, o que é que ainda não foi dito? O que é que falta dizer? Nada e tudo. E aqui continuamos, longe, muito distantes, de encontrar a chave que nos abra a porta deste paradoxo. Bem sei que, quiçá, essa procura é uma impossibilidade. Que não existe qualquer via de acesso aos insondáveis desígnios. Da vida e da morte. Dos tempos de viver e de morrer. Não existe. E quando esses intentos acontecem em idades prematuras? Em idades temporãs? Tenras? Quando os olhos brilham? Quando os sonhos semeados estão a germinar? Aí, tudo colapsa. É a revolta. É o caos. Sermos David e Rafael, nestes tempos cruéis, não nos acalma. Sermos comunidade, não nos sossega. Partilharmos a dor da família, não nos apazigua. Sermos solidários, não nos aquieta. Bem sei que não. Mas, sejamos tudo isso, pois ainda é o q...

JANEIRA: A FAMA QUE VEM DE LONGE!

Agostinho Oliveira, António Oliveira, Agostinho Oliveira. Avô, filho, neto. Três gerações com um mesmo denominador: negócios, empreendedorismo. Avelal, esse, é o lugar da casa comum. O avô, Agostinho Oliveira, conheci-o há mais de meio século, início dos anos 70. Sempre bonacheirão e com uma palavra bem-disposta para todos quantos se lhe dirigiam. Clientes ou meros observadores. Fosse quem fosse. Até para os miúdos, como era o meu caso, ele tinha sempre uma graçola para dizer. Vendia sementes de nabo que levava em sacos de pano para a feira. Para os medir, utilizava umas pequenas caixas cúbicas de madeira. Fossem temporões ou serôdios, sementes de nabo era com ele! Na feira de Aguiar da Beira, montava a sua bancada, que não ocupava mais de um metro quadrado, mesmo ao lado dos relógios, anéis e cordões de ouro do senhor Pereirinha, e com o cruzeiro dos centenários à ilharga. O pai, António Oliveira, conheci-o mais tardiamente. Já nos meus tempos de adolescência, depois da revolu...

Ivon Défayes: partiu um bom gigante.

  Ivon Défayes: um bom gigante!  Conheci-o em finais dos anos oitenta. Alto e espadaúdo. Suíço de gema. Do cantão do Valais. De Leytron.  Professor de profissão, Ivon Défayes era meigo, afável e dado. Deixava sempre à entrada da porta qualquer laivo de superioridade ou de arrogância e gostava de interagir, de comunicar. Gostava de uma boa conversa sobre Portugal e sobre a terra que o recebeu de braços abertos, a pitoresca aldeia do Tojal, que ele adotara também como sua pela união com a Ana. Ivon Défayes era genuinamente bom, um verdadeiro cidadão do mundo, da globalidade, mas sempre um intransigente cultor do respeito pela biodiversidade, pelo ambiente, pelas idiossincrasias locais, que ele pensava e respeitava no seu mais ínfimo pormenor. Bem me lembro, aliás, das especificidades sobre os sons da noite que ele escrutinava, vindos da floresta, da mata dos Penedinhos Brancos – das aves, dos batráquios e dos insetos – em algumas noites de verão, junto ao rio Sátão. B...