Chamem-lhe fatalismo ou aquilo que quiserem. Chamam-lhe
destino ou lá o que for. Chamem-lhe tudo o que vos aprouver.
Eu fico-me pela crua realidade de me ter de confrontar com a
morte de um amigo. Com a partida de alguém que nos tocava na intimidade do
nosso querer estar com ele. Sempre com uma alegria forte. Feita de palavras
nuas. De sílabas soletradas ao som das cascatas de água cristalina do
Montemuro. Da sua Gralheira amada. Do seu refúgio feito de pedras soltas. Assim
como que um desvão onde partilhou com os amigos os últimos prazeres terrenos.
Fico-me aqui, parado. Sem saber qual caminho seguir. Qual
rumo trilhar. Sem conhecer as víboras da sua serra, de que tanto nos falava. A
força simbólica e milagrosa da sua cabeça, que as ervanárias e as boticas de
Lisboa e do Porto compravam e vendiam a preços proibidos.
Fico-me aqui sem nunca mais poder saborear as suas
gargalhadas limpas e abertas. As suas anedotas agridoces, ditas com a doçura da
linguagem do seu povo. As suas histórias de pastores e de almocreves. A vaidade
com que falava da rija têmpera das suas gentes. O orgulho com que falava da
velhice do seu pai.
Vi-o, a vez derradeira, entre os sete comensais (agora
seis), em Bodiosa, naqueles almoços mais ou menos regulares. Naqueles encontros
que mais não são do que bons momentos. De evasão. De conversa livre. De
liberdade de pensamento que nem o divino censura.
Fiquei triste no final desse encontro. Ficámos todos,
afinal. E dissemos muito pouco, depois de ele ter saído. Nada havia para dizer.
A sua voz. Os seus olhos. Os seus movimentos. Eram o prenúncio. Sentimos todos
o mesmo. A sua meiguice, não. Essa era a mesma. O seu sorriso, também não. Mas
sentimos que desta vez foi forçado.
Era o Zé Carlos. O Zé, professor de Matemática. Um
benfiquista de gema. Que sabia de cor todas as conquistas e jogadores do seu
clube. Um ser humano invulgar. Ímpar.
Lutou e venceu tantas batalhas. Nos hospitais de Viseu, de
Coimbra, onde quer que fosse, estava a sua vontade de viver. E nunca se
resignou. Nunca. Nunca atirou a toalha ao chão. Nem naquele último almoço em
que o vi, em que o vimos.
Desde esse dia, porém, e até hoje, nós não cumprimos. Não
nos foi possível cumprir. Ou não fossem insondáveis os desígnios da vida e da
morte! Mas, de facto, não cumprimos com a ida à Gralheira (onde tantas vezes
fomos) comer o cabrito no forno, com que, logo ali, nos comprometemos.
Resta-me, resta-nos, pois, dizer-te hoje, dizer-te aqui e
agora, solenemente, que lá irei, lá iremos, em breve, à tua Gralheira e contigo
presente, degustar as iguarias da tua terra, da tua serra mágica. Do teu
refúgio.
Um abraço Zé.
Acácio Pinto, 5 de julho de 2023