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Tragédia de Alcafache, 40 anos depois: uma memória que preferia não ter

 

Era o dia 11 de setembro de 1985, por volta das dezanove e trinta. Eu estava a trabalhar na sede do PS em Viseu, na Rua 5 de Outubro, na preparação da campanha eleitoral para as legislativas que iriam ter lugar no dia 6 de outubro. Eu era o sétimo candidato a deputado na lista do PS pelo círculo de Viseu, que era liderada por Armando Lopes (ver nota 1).

Mas esta crónica não é para vos falar de memórias partidárias. É para vos falar da minha memória do mais grave acidente ferroviário alguma vez ocorrido em Portugal.

Lá estávamos, na sede do PS, na sala da secretaria, quando o silvo estridente de uma ambulância nos ecoou nos tímpanos. Antes de termos tempo de perguntar fosse o que fosse, logo outra se anunciou, e mais outra e muitas mais… Fomos à janela e vimos que eram dos bombeiros de Canas, de Nelas, de Mangualde, de Carregal… de todo o lado.

O que se terá passado?

Sim, soubemos pouco depois que tinha ocorrido um choque de comboios na linha da Beira Alta. Só isso. Ficámos em alerta, sem saber muito bem o que deveríamos fazer.

Como poderemos ajudar?

A solidariedade falou mais alto. Metemo-nos a caminho.

No carro, creio que conduzido por mim, ia também o Vítor Pires e o Herculano Costa, que à época era o diretor do jornal Viseu Informação e que tinha aparecido por ali.

Lá chegados, seriam vinte e uma horas, deparámo-nos com um cenário dantesco: carruagens a arder, sobrepostas umas nas outras.

Soubemos que tinha sido um choque frontal entre o Sud-Express e um comboio regional.

Os bombeiros continuavam a trabalhar, como podiam, no pior teatro que alguma vez teriam visto. A combater um fogo que prosseguia e devorava tudo o que lhe aparecia pela frente.

Bem me lembro de, por cima de uma das carruagens tombadas, ter divisado o Américo Borges, o comandante Américo, de Canas de Senhorim. Um médico e um humanista incansável quando se tratava de defender vidas. Um bom amigo. Comandava homens que com estoicismo retiravam corpos das carruagens, entre feridos e mortos.

Sim, percebi no local da impossibilidade de eu prestar, de nós prestarmos, fosse qual ajuda fosse. Estávamos perante um inferno. Mesmo ali à frente dos nossos olhos.

Guardo, ainda hoje, em memória viva, imagens e cheiros que me perturbaram durante bastante tempo. De vidas humanas que ali, naquele fatídico quilómetro, viram ceifados os seus sonhos. Uns, emigrantes, iam em busca de uma vida melhor para o estrangeiro, deixando para trás as suas casas e famílias, outros, turistas, de regresso aos seus países após umas férias, certamente encantadoras, neste país que sempre primou (e ainda prima) por ser acolhedor e generoso.

As vítimas mortais não se sabe quantas foram. Falou-se em quatro, cinco e seis dezenas... Mas o número de centena e meia de mortos será aquele que mais se aproximará da realidade.

Aqui fica o meu testemunho, ad memoriam (ver nota 2) e o meu abraço solidário a todos os que ano após ano lembram a tragédia de Alcafache com uma cerimónia que levam a cabo no local do acidente de que este ano se assinalam os 40 anos.

Acácio Pinto, 11.09.2025

Nota 1: O rosto que o PS apresentou, nessas eleições, como candidato a Primeiro-Ministro foi Almeida Santos na sequência do rompimento do acordo de governação. Cavaco Silva chegara à liderança do PSD no congresso da Figueira da Foz e o governo, liderado por Mário Soares, caiu.

Nessas eleições, que o PSD venceu, com 29, 9%, e em que o PRD surgiu, com 17,9%, o PS obteve o pior resultado eleitoral de sempre em eleições legislativas, 20,8% dos votos.

Em Viseu, o PSD elegeu 5 deputados (Fernando Amaral, Figueiredo Lopes, Luís Martins, Álvaro Figueiredo e José Cesário), o PS 2 (Armando Lopes e Raul Junqueiro), o CDS 2 (Gomes de Pinho e João Morgado) e o PRD 1 (João Meireles).

Era Primeiro-Ministro Mário Soares e Presidente da República Ramalho Eanes.

Nota 2: Muitos anos mais tarde vim a conhecer alguns dos sobreviventes desse acidente que ficou conhecido como Acidente Ferroviário de Alcafache, de que aqui destaco o Carlos Ramos, de Tondela, e o José Augusto Sá, de Ovar.

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