in: Público de 09.01.2014, p.44 |
"Contra tudo o que é estrangeiro podemos encontrar
segurança, mas a morte faz que todos nós, homens, habitemos uma cidade sem defesa." Epicuro
Num curto e belíssimo texto sobre o tema da amizade,
incluído no livro intitulado O Hipopótamo de Deus, José Tolentino de Mendonça
traz-nos ao conhecimento um provérbio inglês de invulgar expressividade: “
Viver sem amigos é morrer sem testemunhas”. Esta afirmação é de uma densidade
prodigiosa, já que remete da solidão irremediável da morte para a natureza
diversa das vidas. Ocorreu-me recuperá-la neste instante especialmente doloroso
em que me vejo confrontado com a vontade, e a dificuldade, de evocar um amigo
morto. Não um amigo qualquer mas o mais próximo dos últimos anos. De súbito,
quando a razão parece estar prestes a despenhar-se num abismo de escuridão e
silêncio, a recordação das palavras de um grande pensador e poeta permite-nos
encontrar um caminho para falar do que parecia indizível: a perda de um amigo
profundamente digno. Resta-me, pois, apresentar o meu testemunho sobre o Manuel
Seabra, cidadão empenhado, jurisconsulto e político que morreu na semana
passada.
Uma lapidar biografia institucional remete-nos para a
enunciação de um percurso factualmente verificado. Manuel Seabra foi vereador e
presidente da Câmara de Matosinhos, integrou diversos órgãos dirigentes do PS,
incluindo o próprio Secretariado Nacional, e desempenhou durante os últimos quatro
anos as funções de deputado na Assembleia da República. Ocupou todos estes
cargos de forma exemplar deixando um lastro de seriedade, competência e lisura.
Valorizava o estudo, cultivava o rigor e pautava-se por critérios de elevada
exigência intelectual. Dito isto, que já não é pouco, o essencial fica ainda
por dizer.
Manuel Seabra foi sobretudo um homem livre que combateu com
mais convicção do que gosto e que nunca abdicou de uma atitude tolerante e
solidária. Por detrás da sua permanente bonomia havia um carácter forte e
insubmisso, pronto a lutar quando isso se impunha, disposto a concordar quando
tal se revelava possível. Essa força interior impeliu-o a tomar decisões de
inegável coragem que lhe abriram, simultaneamente, as portas do reconhecimento
e da incompreensão. Não tinha o hábito de evitar as incomodidades e nunca
claudicava na defesa daquilo em que verdadeiramente acreditava. A sua generosa
compreensão das debilidades humanas tinha, porém, um limite – abominava tudo o
que era medíocre, pequeno e vil. Por isso o víamos a ele, que era um ser de
temperamento solar, a reagir com alguma brusquidão perante manifestações
daquela natureza. Agindo dessa forma deu um inestimável contributo para a
renovação da vida partidária provocando transformações destinadas a perdurar no
tempo. Num país onde ainda parece preponderar a gramática da obediência
ardilosa, que prefere a dissimulação à clarificação, el e ousou várias vezes
seguir pelo caminho mais difícil. Quando teve de romper, rompeu, quando achou
que deveria partir, partiu. Pagou por isto um preço muito elevado quando foi
vítima de uma tentativa de silenciamento político. Nessa ocasião optou pela via
da dignidade e afastou-se por uns tempos da política activa refugiando-se na
prática da advocacia, profissão que aliás o apaixonava. Voltou quando o foram
buscar.
Exerceu com especial alegria a função de deputado. Homem
inteligente e culto, apreciava o debate, percebido como fecunda interacção de
inteligências divergentes. Por isso mesmo era tão incisivo quanto tolerante,
tão duro na retórica quanto aberto à compreensão das razões dos outros. Não era
um dogmático, cultivava um pragmatismo exigente. Daí que tivesse amigos em
todos os quadrantes políticos, decerto sensíveis à sedução do seu humor
inteligente. Só num assunto assumia as vestes de um fanático, na exaltação da
sua paixão benfiquista.
Fará falta ao país, ao Parlamento e ao PS. Subsistirá como
uma memória constante no círculo dos seus amigos, que eram muitos, e que jamais
esquecerão que o Manuel Seabra seguia exemplarmente uma outra afirmação, também
contida no já referido livro, esta da autoria de Séneca: “Ter um amigo é ter
alguém por quem morrer”. Estamos a sair de uma época em que com relativa
banalidade os homens se dispunham a morrer por ideias abstractas; infelizmente
também se dispunham com relativa facilidade a matar em nome delas. Para não
cairmos agora no vazio de um egoísmo radical precisamos de regressar a essa
longínqua afirmação de Séneca. Há muitas formas de morrer por um amigo. Manuel
Seabra correu muitos riscos em nome desse valor superior da amizade. Isso
distinguia-o e elevava-o a uma categoria muito rara na nossa vida pública.
Confrontados com a dor da sua morte talvez possamos encontrar algum conforto
numa derradeira citação de José Tolentino Mendonça: “Porventura o mais fecundo não está na
pergunta ‘Porque é que eles partiram?’, mas nessa outra que levaremos a vida a
responder, e sempre em total gratidão: ‘Porque é que eles vieram?’.”
Francisco Assis
in: Público 2014.01.09