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Acácio Pinto com uma t-shirt vermelha em que se pode ler “O general do povo” (junho de 1974) |
A carreira das nove, como era conhecida, apesar do seu
horário ser às nove menos dez, subia vagarosamente de Douro-Calvo para a Rãs.
Naquele troço, a estrada tinha um acentuado declive e do motor, ruidoso e em
esforço, saía pelo cano de escape uma grande fumarada negra. Era tempo de pegar
na mala dos livros e no cesto de vime com o almoço e esperar a sua iminente
chegada para mais uma viagem.
O ritual era todos os dias o mesmo, desde há cinco anos. Ir
de Rãs para o colégio de Aguiar da Beira, de manhã, e fazer o sentido inverso
ao final da tarde.
Até àquele momento, aquela quinta-feira, 25 de abril de
1974, fora em tudo igual às demais. A minha mãe levantara-se às 6 da manhã,
para acomodar os porcos e as cabras, para abrir as galinhas e para fazer o
almoço que eu teria de levar para o colégio. Depois, às oito menos um quarto,
acordava-me, mas era rara a vez em que eu me levantava à primeira. Virava-me
para o outro lado e, à segunda, lá saía da cama. Lavava a cara (tomar banho era
só ao fim de semana) e, ainda estremunhado, comia uma malga de café migado com
broa. Naquela quinta-feira, porém, bem me lembro, o café foi migado com bolo de
azeite, pois a Páscoa fora no dia 14 e os bolos duravam sempre por mais duas ou
três semanas.
Por volta das oito e meia, era hora de a minha mãe meter o
almoço num tacho de alumínio de dois compartimentos, um para carne ou peixe e o
outro para as batatas cozidas, arroz ou massa. Depois envolvia o tacho com
várias camadas de jornais para a comida se manter quente até ao almoço. Está
claro que no colégio não havia cantina e levar comida de casa era mais barato
do que ir comer à pensão Brasil ou a qualquer outra. Para despesas bem bastavam
as mensalidades do colégio, que, não sendo baratas, fizeram com que o meu pai
tivesse de ir para França, para suportar as despesas com o estudo dos filhos.
– Vamos lá a subir menino, que se faz tarde – disse o senhor
Domingos, o cobrador, depois da velha carreira da União de Sátão e Aguiar da
Beira parar e de abrir a porta de trás para eu entrar.
Subi e tentei encontrar um banco vazio longe dos fumadores,
sempre em grande número, para não enjoar durante a viagem. Fiquei a meio do
autocarro, junto à janela, pois sempre a poderia abrir se o enjoo estivesse
iminente.
Lá à frente, o senhor Campos, o motorista, ia numa conversa
permanente com um passageiro que ia sentado no primeiro banco. Falavam sobre
militares, sobre uma revolução em Lisboa, mas, pelo tom de voz, não eram muito
audíveis.
O passe – pediu o cobrador, sentando-se ao meu lado, como tantas
vezes fazia.
Retirei-o da mala, dei-lho e perguntei, curioso,
– O que é que se passou em Lisboa, senhor Domingos?
– Parece que houve uma revolução – respondeu em voz baixa. –
Os militares revoltaram-se e parece que derrubaram o governo do Caetano, mas
também não sei muito mais e ainda por cima hoje calhou-nos esta carreira velha,
com o rádio avariado.
– Uma revolução? – repeti de forma interrogativa. – O meu
primo Gaspar, às vezes, falava nisso. Dizia que era preciso uma revolução para
acabar com os fascistas.
Seriam, portanto, para aí umas nove e um quarto, quando a
revolução de abril me foi apresentada pelo cobrador da carreira das nove que
diariamente me levava para o colégio do padre Fonseca, em Aguiar da Beira. A
essa hora já a Grândola soara, já os militares estavam na rua, já Salgueiro
Maia arriscava a vida, já o MFA tinha emitido seis comunicados, já os cravos
andavam de mão em mão… Eu andava no quinto ano e tinha catorze anos.
Foi há 51 anos!
Viva o 25 de Abril! Sempre!
(Esta crónica foi escrita em 2023 e adaptada a 2025).
Acácio Pinto 25.04.2025