Ao concluir a leitura de O Leitor de Dicionários, confesso, senti-me diante de uma obra que ultrapassa o mero exercício narrativo e se impõe como uma verdadeira reflexão sobre o papel da linguagem, da memória e da identidade. O romance não só homenageia a palavra como matéria-prima da existência, como também provoca no leitor, convida-o, a reavaliar sua própria relação com os significados que escolhemos, utilizamos, para interagir e no fundo para construir o mundo.
A personagem do Alberto Suídas — leitor obsessivo, quase
ritualístico, de dicionários — é, ao mesmo tempo, comovente e simbólica.
Alberto Suídas é uma personagem rica e complexa, introspetivo e levemente
andrógino, ultrapassa a função narrativa para se tornar numa figura emblemática
da relação entre palavra e existência. Procura nos dicionários um significado e
um sentido de existir (e vice-versa). A sua história convida a pensar sobre o
que significa ler — e o que significa viver através da leitura. No essencial,
encarna o desejo humano de encontrar ordem no caos da experiência, abrindo cada
verbete como quem procura sentido nas ruínas de uma história pessoal e
coletiva.
O romance termina de forma reflexiva e melancólica, deixando
a sensação de que Suídas viveu mais no interior das palavras do que fora delas.
O fim não é trágico, mas sereno — quase como o fechar de um livro depois de uma
leitura intensa e transformadora.
Uma palavra para a escrita: subtil e cuidadosa, com
tonalidades líricas e, por vezes, de ironia fina, que ecoa a complexidade de
quem sabe que a linguagem é tanto ponte quanto abismo. A alternância entre
registos reflexivos, poéticos e narrativos contribui para uma leitura densa,
mas extremamente gratificante.
Como leitor, tenho
que te agradecer a coragem da escrita deste romance que exige tempo, silêncio e
escuta - exatamente como um dicionário bem lido.
João Ferreira da Cruz
Foto: Público
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