Texto de José Lapa, publicado no jornal Via Rápida, 15.05.2025
Nestas coisas da escrita, lembro-me muito de Adília Lopes: «Nada te turbe / Nada de espante». Talvez a escrita se inicie aqui, apesar de ser difícil percebê-la na sua origem, lá bem no fundo das nossas motivações, desejos ou missões. Do fluxo memorial desagua-me também Vergílio Ferreira, logo ele que dizia ter vindo para se desassossegar e nos desassossegar: «Da minha língua vê-se o mar». E, no desassossego, pulsa e vive a pátria, esse extenso domínio da língua, como escreveu Pessoa.
Acácio Pinto, anda de
escola em escola, a falar dos seus livros, nomeadamente dos últimos: O
Volframista (2023) e O Leitor de Dicionários (2024).
Dois textos que marcam preocupações sociais e culturais do autor, ou seja,
humanistas. Acácio Pinto, é um escritor de missão, por isso, e tenta semear a
palavra e a leitura, como kit de sobrevivência para tempos sem espanto e onde a
língua mirra tida por desnecessária, as tecnologias falam por nós, basta-nos
dizer que não somos um robot.
O Volframista,
é uma obra que sopra, em narrativa clara, as cinzas de um tempo, em que se
misturam, em cocktail inabalável o pior da natureza humana: crime, ganância, egoísmo,
infidelidades, ditadura, guerra. Querem mais? O tempo do negócio do volfrâmio
que durante a II Grande Guerra marcou um país bolorento e cinzento. Rushdie, escreveu
que "a literatura está ao serviço da verdade". E é isto que o
autor pretende, numa evidente paixão telúrica, manter a chama da verdade,
reacendendo uma das fogueiras tétricas da história, depois de o Grande
(maiúscula propositada) Aquilino, também profundo conhecedor desta região ter
feito o mesmo, já em 1943. Acácio Pinto, não deixa de convocar a linguagem do
povo rural à colação narrativa, o que substancia o texto. E no meio do clamor
da história, e do exacerbado calor da natureza humana que a pestilenta ditadura
sedimentou, há um fim feérico para provar que apesar de tudo a esperança não
morre.
Já em O Leitor de Dicionários, primam os dicionários. Impõe-se aqui um pressuposto pessoano: primeiro estranham-se, depois entranham-se. A experiência de Alberto “Suídas”, personagem principal, foi idêntica à minha. Sim, as saudades que tenho daqueles pequenos cadernos de significados! Havia ali o prazer de um lepidóptera, onde cada palavra esvoaçava, qual borboleta pela minha imaginação, ou de um charadista na procura da palavra certa. Aliás com exceção do seminário, há tanto de comum no meu corredor de vida educacional, na paixão pelas palavras e pelos seus mestres, e por aqueles que com elas constroem mundos fantásticos. Os dicionários volumosos perderam-se pelas florestas do digital, sim, mas eu continuo inseparável deles: se procuro no computador uma palavra, tenho-a rapidamente, certo! Mas, se a procurar num dicionário tenho o prazer acrescido de me cruzar com muitas outras, e saborear outras, e conhecer outras, e isto, é incomensurável satisfação. Este deleite o digital não me dá e é de uma praza inqualificável, inclassificável. Das palavras há uma que não me sai da cabeça, logos. “No princípio era o logos e o logos estava em deus e deus era o logos”. Em tantos anos no ofício de leitor é o melhor que li. O espanto do tradutor (o Professor Frederico Lourenço) é também em si, notável: “Quem terá escrito semelhante coisa?”. Cada palavra tem uma memória, uma história, uma verdade, uma sombra. Vergílio Ferreira, em “Para Sempre”, cita Saul Dias: “A vida inteira para dizer uma palavra! / Felizes os que chegam a dizer uma palavra!”. as palavras são o coração do mundo, afinal; é com elas, por elas, que o mundo gira. A primeira nótula que me merece este livro é o da sua oportunidade. As palavras estão-se a desvalorizar, há que lembrá-las, incentivá-las. O padre Rafael Bluteau (1638/1734) - que segundo João Paulo Silvestre “compôs o mais extenso repositório da memória da língua até ser progressivamente substituído pela obra moderna de Morais Silva” - escreveu que “todo o Reino, falto de palavras, é pobre”, assim estamos, pobres. O discurso político, talvez porque vivemos em tempos de ligeireza e de ignorâncias atrevidas, desvaloriza as palavras, vê-se muito o “implementar” e muito pouco “verdade”, “liberdade”, “bondade”. Nos EUA, já se proíbe o uso de 200 palavras nos serviços públicos, é a doutrina da “novilíngua” orwelliana. A segunda nótula, este livro pretende incentivar o prazer da leitura, a sapidez pelo uso da palavra. O Leitor de Dicionários é um texto bem escrito, elucidativo de paixões: na cartografia memorial da região; no enigma; nos ajustes do destino; nas paixões oriundas das palavras e nas palavras “ficara rendido ao seu vocabulário e à assertividade das palavras”; porque nos confronta enquanto leitores entre a realidade e a ficção, bem como, quanto aos limites das representações. Terceira nótula, por tudo isto, este livro merecia bem fazerparte do Ler + Plano Nacional de Leitura, pela sua força seminal quanto ao incentivo à leitura. Entretanto, merece bem que o leiam.