As cidades são como os seres vivos. Também nascem. E morrem, morrerão.
Um dia, longínquo, quantas vezes indeterminado, uma qualquer
pedra rolada fecundou um útero. Foi fundadora de um organismo. De um
aglomerado. Foi sémen brotado nas margens de um rio espraiado ou de uma
qualquer ribeira a despenhar-se serra abaixo. Foi rua. Foi casa. Castelos e
palácios. Pontes, muitas. De união de povos. Tantas de propagação de ódios.
E as cidades nasceram. Cumpriram-se. Nas funções ilimitadas
que sempre a viveram. Que a vivem. Todos os dias se cumpriram. Se cumprem.
Muito na proximidade.
Cumpriam-se quando o adormecer e o amanhecer se sobrepunham!
Cumpriam-se no "bairro mais alto do sonho". Onde borbulhavam.
Efervesciam. Eram ébrias. Eram feras masculinas e femininas em danças sombrias!
Cumpriam-se nos corredores corrompidos por poderes fátuos. Cumprem-se, sem
máscara, nas azinhagas de consumos escondidos. Também se cumprem, ainda agora,
em cada noite que passa, nas cantinas das sopas e nos vãos de escada onde dormem
homens em cartões de LCD's.
E as cidades viveram! Viveram dos eléctricos e dos táxis.
Dos magalas e dos operários. Dos poetas e dos artistas. Das Piafs e dos Brels.
Das Amálias e dos Aznavours. Viveram! Viveram nas ruelas e nos terreiros! Nas
alamedas e avenidas! Nas leitarias e nas tabernas! Nas ginginhas e nos beijos
furtivos nos parques mais escondidos dos quarteirões! Bem sei, também se vivem
nos monsantos e nos sodrés de corpos à deriva.
E as cidades também têm, sim, quantas não tiveram cercas?
Viseiras para os forasteiros? Máscaras fora dos teatros vicentinos? Quantas não
repulsaram, repulsam, os mensageiros? Os visionários de amanhãs incertos?
Quantas, tal qual nós, não se agridem na ágora e se envolvem nos veludos dos
luxuosos quartos de hotel?
E as cidades também morrem! Morreu Herculano! De pé. Pompeia
não se ajoelhou ante o fogo que a engolia! Éfeso, essa, viu o mar fugir, mais
além! Babilónia continua suspensa nos jardins de pedra. E quantas não se
afogaram, afogam, nas albufeiras do nosso desenvolvimento? E quantas não se
afundam, todos os dias, ante piedosos pregadores de paraísos de leite e mel?
As cidades também morrem! Aos nossos pés! Ali, aqui bem à
nossa frente! Todos os dias! Nos subterrâneos. Onde as turbas, de palas e
auriculares, não veem nem ouvem, não querem ouvir, os reversos.
Mas as cidades, a cidade morre, começa a morrer, quando não
há ninguém para adormecer ao acordar!