Era eu miúdo e lá vinha, na noite de passagem de ano, o presságio pela boca do meu avô ou da minha avó: o ano que vem é bissexto, vai ser um ano travesso!
Bom, e o que é facto é que, debaixo daquele vaticínio, tudo
quanto de mau acontecia no ano seguinte era atribuído ao bissexto e ao vigésimo
nono dia de fevereiro, pois então!
Era a porca que paria e uns quantos leitões morriam e lá
vinha o bissexto. Era a geada tardia que queimava as batatas e lá vinha o
bissexto. Era a trovoada e “pedra” que caía em julho e estragava as uvas e lá
vinha o bissexto. Era o verão que abrasava e o milho definhava e lá vinha o
bissexto. Eram as cenas de pancadaria e cabeças rachadas nas festas e romarias por
entre uns tintos bem bebidos e lá vinha o bissexto. Era a vaca que não
“alcançava” depois de ir ao boi e lá vinha o bissexto. Era, assim como, um ano
negro, de breu, um inferno, sem tirar nem pôr.
Até que surgiu 2020. Sim, para repor essa milenar
“sabedoria”. Depois desse saber ter saído dos nossos currículos quotidianos
tinha de vir um bissexto, à altura desses pergaminhos, para repor as coisas nos
seus devidos lugares!
É que, os tempos modernos, com a nossa conivência, baniram
das noites de natal e de passagem de ano as conversas sobre essas e outras
histórias para dar lugar aos lcd’s, aos ecrãs de milhões de megapixéis e aos
headphones. Toda aquela melopeia de outrora que nos chegava por aqueles de quem
nós gostávamos, mas de quem começávamos a duvidar, face à superioridade das
novas “luzes” que entravam pelas ondas hertzianas, começou a entrar em desuso
há muitos anos. E até os bissextos deixaram de o ser para se tornarem tão
comuns como os demais.
E, agora que 2020 se fina, (já perceberam o porquê desta
crónica!), é bom, para não o provocarmos ainda mais, que aproveitemos este
final de ano, de confinamento, para tentarmos equilibrar as contas correntes
dentro das nossas “tribos”. Por que não libertarmos os ouvidos dessas músicas e
sons mais ou menos virais? Por que não focarmos as íris em alvos e rostos bem
menos virtuais? Por que não conversarmos sobre pretéritos mais ou menos
perfeitos do “passageiro” que está ali mesmo ao nosso lado? Por que não partilharmos emoções e sentimentos que, quantas vezes, nos preenchem o
horizonte e carregamos sozinhos? Por que não testemunharmos, em alta voz, os nossos medos pelo futuro que teima em não se deixar (e bem!) decifrar?
Por que não?
Experimente e vai ver que este é mesmo um parto sem dor!
Fica o desafio!
Votos de um comum ano de 2021! Para incomum bastou-nos este!
[©Letras e Conteúdos]