Efetuei no dia 4 de dezembro uma intervenção no "congresso nacional de apresentação do projeto 'Surdocegueira': um modelo de intervenção" que decorreu nos dia 3 e 4 de dezembro no centro cultural de Belém, na sala Almada Negreiros e cujo programa pode consultar AQUI. Destaco também a excelente intervenção do Bravo Nico, membro do CNE e professor da universidade de Évora.
Aqui deixo o guião da minha intervenção a que dei o título de "Educação inclusiva: das políticas às práticas".
«Caras e caros congressistas,
Uma saudação a todas e a todos.
Quero, desde já, e neste início de intervenção, agradecer o
convite que me foi endereçado pela Drª Madalena Antunes para participar neste
congresso nacional de Apresentação do Projeto “Surdocegueira: um modelo de
intervenção” e que também se insere no âmbito das comemorações nacionais do dia
internacional das pessoas com deficiência.
Um agradecimento e uma saudação, também às instituições
organizadoras, à Casa Pia de Lisboa/Centro de Educação e Desenvolvimento António
Aurélio Costa Ferreira e ao Instituto Nacional para a Reabilitação, mas
igualmente a todos quantos participaram nas sessões regionais e, através do seu
empenhamento, contribuíram para que este congresso possa ser uma realidade mais
densa.
Pois bem: afinal o que vos posso trazer, o que posso trazer a
este congresso, no âmbito da sua temática geral e da deste painel em
particular?
Bom, escolhi como tema para esta intervenção “Educação
inclusiva: das políticas às práticas”, tentando corresponder assim àquilo que
pensei poderia ser o meu contributo pessoal, eu que sou da educação, sou
professor, estando, transitoriamente, como deputado à Assembleia da República,
na comissão de educação, eleito pelo PS.
Será, portanto, uma intervenção, não especializada, generalista,
em torno da educação inclusiva.
Caras e caros congressistas,
Se há áreas que estão na ordem do dia nestes tempos de crise
e de prosas bárbaras, parafraseando o título de um livro de Eça de Queirós, a
da educação inclusiva é uma delas.
E está na ordem do dia nem sempre pelas melhores razões, mas quase
sempre pelas piores, pela ausência ou redução de respostas para os cidadãos com
deficiência.
Com efeito, as áreas da educação especial e da inclusão, que
deveriam ser bastiões de uma escola promotora da igualdade de oportunidades e
deveriam merecer toda a atenção por parte dos poderes instituídos, nomeadamente
por parte do ministério da educação e ciência e do da solidariedade, emprego e
segurança social, começam a soçobrar de uma forma inadmissível, muitas vezes
com a transigência de muitos agentes institucionais, mesmo sabendo-se dos
vínculos internacionais que Portugal assumiu, assinando convenções sobre estas
matérias.
Todos conhecemos a convenção sobre os direitos das pessoas
com deficiência, a declaração de Salamanca ou a carta europeia dos direitos do
homem e, afinal, a própria constituição da república portuguesa, a nossa
constituição. Nenhuma delas engana, não enganam, e apontam o caminho aos
decisores. Estes, os decisores, não o esqueçamos, que são sempre
circunstanciais e que seria bom que o interiorizassem, têm feito tantas vezes tábua
rasa dos princípios e dos valores aí ínsitos, valores esses que têm que ser o
lastro da educação especial e da escola inclusiva.
É que todos os cidadãos portugueses o são, e só são, se de
pleno direito. Todos são precisos. Todos fazem parte. Todos têm que encontrar
respostas nas instituições do seu país que é o nosso país. Temos que lutar pela
igualdade de oportunidades para todos e a diferença não é, nunca foi, uma
fraqueza, é e será sempre uma sinergia, uma mais-valia competitiva de qualquer
país, de qualquer território. A diferença acrescenta e não diminui.
Bem o sabemos, mas temos que o afirmar constantemente, com
força, que dentro de cada pessoa com deficiência mora um cidadão, mora uma
expectativa, mora um amanhã, mora um futuro. Não temos o direito de obstruir
essa personalidade, fazer precludir esse magma que tal qual todos os demais se
quer cumprir na sociedade que é a sua sociedade nesta nação de que faz parte,
que integra.
Deixemo-nos, portanto, de hipocrisias. Todos. E o todos é
desde logo cada um. Estejamos onde estivermos.
Entendamo-nos.
A educação especial tem como grande princípio orientador a
inclusão educativa e social das crianças e jovens com deficiência numa escola
que integre todos os alunos. Uma escola que seja capaz de responder e respeitar
diferenciadamente as suas necessidades educativas.
E se assim é só se pode exigir ao estado através do governo
que cumpra aquilo que lhe compete. Que as práticas sejam consonantes com os
normativos e com toda a subjacência que os informa e está a montante. Que os
discursos não sejam manuais de retórica oca e de cínica hipocrisia.
Algumas perguntas exemplificativas.
Será que podemos aceitar que volvidos três meses após o
início do ano letivo ainda tenhamos crianças, com rosto, o seu rosto, sem
professores e técnicos especializados? Crianças a quem esteja a ser vedado o
acesso a uma escola, a uma turma?
Será que podemos concordar que, para o mesmo número de alunos,
o serviço público de educação, a escola pública, esteja este ano letivo a
afetar metade, ou menos de metade, dos recursos humanos do ano letivo anterior
conforme se pode documentar em sites de instituições e em exposições e comunicados
provindos de agrupamentos de escolas e de associações de pais?
Será que podemos compactuar com um corte de 14 milhões de
euros para a educação especial no orçamento de estado para 2014, quando, a
título de mero exemplo, o orçamento dos gabinetes dos membros do governo do
ministério da educação (ministro e secretários de estado) cresce globalmente 1,6%?
Será que podemos permitir que as pessoas com deficiência
sejam cidadãos invisíveis, institucionalizando-os ou escondendo-os ao
dificultar-lhes as acessibilidades cívicas nas nossas polis, pese embora todas
as diretivas, leis de bases ou decretos-leis?
Será que nos podemos bastar com a existência de normativos,
de princípios, de valores, de investigações científicas que depois não
traduzimos em práticas, sequer mínimas, no que a esta problemática diz
respeito?
Caras e caros congressistas,
Bem sabemos que as interrogações que acabei de formular
poderão ser conjunturais. Mas não serão elas o resultado de práticas que acontecem
por aí, hoje e agora?
E se acontecem o pior que poderíamos fazer, que poderemos
fazer, é fechar os olhos, é escamoteá-las.
Não o podemos fazer, não o devemos fazer.
Porém, não posso, também, por rigor de análise, deixar,
igualmente, de vos dizer que percorremos um longo caminho de que nos temos que
orgulhar.
Com efeito, construímos um corpo legislativo e um corpo
técnico que acompanha aquelas que são as principais linhas defendidas pelos
organismos internacionais.
Temos instituições, públicas e privadas, de referência que
nos merecem todo o respeito e que devemos acarinhar pelas respostas de grande
qualidade que dão no dia-a-dia a milhares de cidadãos nas mais diversas
vertentes da deficiência.
Temos parcerias entre o estado e associações, que funcionam, e
que só importa aprofundar e melhorar.
Temos na academia, na investigação e na ciência um vasto
conjunto de professores e de investigadores que se dedicam de uma forma
absoluta a estas questões, com resultados reconhecidos nacional e internacionalmente.
Temos nas escolas e agrupamentos de todo o país e nos centros
de recursos para a inclusão, os CRIS, professores especialistas, técnicos de
diversas áreas e colaboradores que permitem que todos os dias aconteça escola
inclusiva, aconteça inclusão. Só não nos podemos esquecer, como está a
acontecer, de os olhar como respostas qualificadas, cujas vagas, ainda neste
momento, temos que preencher.
Temos pais e encarregados de educação que fazem uma entrega
superior ao movimento associativo por forma a construírem plataformas de respostas
qualificadas para os cidadãos com deficiência.
E se temos tudo isto, deve-se com certeza à nossa sociedade
como um todo organizado e como um todo atento e sensível às questões que aqui
nos juntam.
E este é um caminho que vem de longe. Não de tão longe quanto
gostaríamos, mas que já tem pelo menos duas décadas.
Ele radica nas normas sobre igualdade de oportunidades para
as pessoas com deficiência. Assenta nas resoluções das Nações Unidas dos
princípios dos anos 90 do século XX que afirmavam não só a igualdade de direito
à educação para todos os cidadãos com deficiência, mas que esse acesso à
educação acontecesse nas escolas integrantes dos sistemas educativos,
designadas escolas regulares.
E estes documentos das Nações Unidas e declarações
posteriores, como a de Salamanca, já atrás referida, reiteravam, reiteram, que
as escolas devem acolher todas as crianças independentemente das suas condições
seguindo os princípios da inclusão e de uma escola para todos, isto é, escolas
que aceitem as diferenças e que respondam às necessidades educativas especiais
de cada indivíduo.
E, portanto, a reformulação profunda que aconteceu, também em
Portugal, nas últimas décadas, na sequência de toda a investigação
internacional e de todas as resoluções de organismos internacionais, foi nesse
sentido e, pesem embora, os problemas graves, conjunturais, com que nos
defrontamos, há um espaço consolidado que não terá recuo face à absorção
individual dessa matriz inclusiva, por cada um de nós enquanto cidadãos e por cada
uma das nossos instituições e plataformas de intervenção cívica.
Temos, portanto, que continuar esse, este, trabalho para
podermos, a montante, continuar a melhorar o edifício teórico e legislativo e a
jusante podermos encontrar as melhores respostas e os melhores recursos para
estas necessidades, para termos, de facto, uma escola pública e um serviço
público de educação que efetivamente incluam.
Nunca deixemos, pois, de nos interrogar, de interrogar a
sociedade, de nos indignar quando estiverem em causa, como acho sinceramente
que têm estado últimos tempos, as respostas dos poderes instituídos à escola
inclusiva e desta aos nossos concidadãos.
Não permitamos nunca que isso aconteça, com o nosso silêncio.
Não há sociedades perfeitas, com certeza que não, mas há
sociedades que podem e devem ser exigentes e rigorosas consigo próprias.
É esse o nosso desafio: sermos exigentes e rigorosos com a
certeza de que a diferença não diminui, a diferença acrescenta.
Disse.»