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"In memoriam" da tia Rosa

 


O trabalho era o seu foco. Todos os dias. Do sol nado até à noite adentro.

Por ela passava tudo, mesmo tudo, o que acontecia naquela casa. Sempre de atalaia para servir. Sempre atenta aos movimentos. Sempre solícita aos pedidos. Sempre com uma voz doce para com todos. Mesmo quando dizia “já chega” àqueles que não cansavam a sede com o graduado vinho do Dão, a sua aspereza era doce, era meiga.

É verdade, padre José Henrique, e permita-me a citação, “ela tinha pica, tinha muita pica”. Era, de facto, uma mulher de armas. De garra e com muita garra. Sempre com a adrenalina em alta. Que andava num torvelinho permanente. Do café para a sala das cartas e desta para o salão do primeiro piso. Para aquele santuário gastronómico.

Quem nunca pisou aquele chão? Quem nunca provou os seus petiscos? Os seus manjares? As suas iguarias?

Quem não se lembra da cabidela? Do cozido à portuguesa? Do bacalhau na brasa? Das enguias? Do leitão? Dos enchidos? E-sei-lá-eu-mais-o-quê?

E do queijo? Sim, do queijo, quiçá o maior ícone da casa. Do de ovelha, do de cabra, do de mistura, do curado. De todos. Queijo? Era aquele. Era o queijo do Rijo.

Ir ali era um ritual. E os debutantes, qual feitiço, de imediato se associavam às idiossincrasias e às circunstâncias daquele local mágico. E eram tantos os que diariamente ali iam. Que por ali passavam. Nem que fosse só para dizer bom dia.

E eram tantos os que semanalmente ali desaguavam. Para um encontro. Para uma tertúlia. Para um jogo de sueca. Para uma ‘oração’ à volta de umas iscas de presunto, de um prato de queijo, de uma chouriça na brasa. Quem se não lembra daquela chouriça envolta em prata que a tia Rosa tirava debaixo das brasas da lareira do canto?

Eu e tantos outros ali fomos regularmente. Décadas a fio. Tempos sobre tempos seguidos. E ali encontrámos, em todas as idas, um porto de abrigo. Uma nau em que o vento soprava sempre de feição para nos servir. Uma mesa farta sempre à nossa espera. Nem em dias aziagos, e foram poucos nos últimos tempos, para o seu Sporting (a religião da casa), o serviço atraiçoava os clientes!

Costumamos dizer que Deus não dorme. Só que este ano, e perdoem-me, com certeza que por algum descuido que lhe relevamos, Deus não permitiu à tia Rosa mandar-me, a mim que sou do Benfica, uma ‘bicada’, seguida de um “desculpe”, pelo facto de o seu Sporting ter sido campeão.

Fechou-se, pois, um ciclo. Sim, fechou-se, porventura, o lugar mais emblemático das Pedrosas. Aquele lugar que mais movimento lhe dava. Que mais movida lhe trazia. O local, qual refúgio, para tantos que ali iam festejar e dar largas às suas alegrias. Ou, então, saciar as suas fomes. As suas solidões. Os seus ardores de vidas, quantas vezes, monótonas e duras! Carpir as suas dores. Da alma. Do corpo. As suas sedes de uma vida melhor! Ou, simplesmente, viver o momento!

Mas se a tia Rosa era uma força da natureza, e era, o tio Manel, o Rijo, era um estratega, o verdadeiro estratega daquela casa. O ideólogo daquele espaço, a que deu forma e conteúdo. Daquela casa que nos acompanhou por tantos anos e que perdurará viva, diga-se, enquanto a memória não nos atraiçoar. Enquanto os nossos ligamentos nos permitirem estas audiências aos passados sentidos e vividos.

Obrigado, por tudo, tia Rosa! Descanse em paz!

Nota: Os chamados “desígnios insondáveis da vida” são, tantas vezes, cruéis! Tão cruéis que foram em 2024, Marco! Força, tio Manel, nós continuaremos aqui!

Acácio Pinto | 08.06.2024

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