Deixo-vos um magnífico texto do diretor do Jornal do Centro, Paulo Neto, publicado, como editorial, no respetivo jornal de 14 de dezembro:
«A aldeia global foi um conceito
interessante. Muita gente gostou da ideia. Ser cidadão do mundo estacionado no
seu bairro era uma aventura atraente. Ter um amigo em Istambul e uma amiga em
Toronto ou na Malásia – que nunca conheceria pessoalmente – era uma exaltação.
Aceder à Biblioteca de Washington através de um clique era um sibaritismo.
Investir as poupanças em Wall Street era um ticket para o pré clube dos
milionários. Viver como os gauleses sem nunca ter visto a torre Eiffel era um
deslumbramento. Beber pilsen como os checos sem saber onde fica Praga era uma
emoção. Comer salsichas bratwurst dos teutónicos fazendo de contas que tinham
sido enchidas em Tortosendo era uma arteirice. Ter um produto tóxico nas Cayman
ou um Cayman na garagem… era tudo muito
atordoante e muito superior à velha rábula do gato maltês que tocava piano e
sabia francês.
Mas – esta conjunção adversativa
é muito incómoda – houve quem avisasse. O Saramago avisou. Lembram-se da
“Jangada de Pedra”? Ah, nunca leram! Pois está na altura de se remirem dessa
grave lacuna… Porém, como era comunista logo se tornou suspeito para quantos
acham que gordura e inchaço são a mesmíssima coisa.
Hoje, que todos começámos a
perceber como a “globalidade” nos roubou a alma, a memória e a carteira, ansiamos
voltar a pertencer a um território, uma região, um concelho, quase com guardas
fronteiriços de atalaia à nossa identidade. Comer cozido à Portuguesa com reco
cevado a lavagem, nabo, cenoura, couve e batata da horta e azeite do nosso
olival. Tinto da velha cepa. Pita pedrês do nosso galinheiro e vitela do nosso
lameiro. É que, à parte que me toca, tal cozido com porco andaluz, nabo galego,
cenoura belga, batata romena, azeite chileno, tinto napolitano, pita da
indonésia e vitela made in USA, não me cheira nem me sabe… Mas é global. Lá
isso é.
Até já tenho saudades de ler o
Borda d’Água e o Seringador para perceber quando o frio arreganha e o calor
entorpece; ver os filmes que o Martinho do Vicaínho trazia na caminheta e
passava no velho clube, uma vez por mês e de amor ou couboiada spaghetti ; ler
O Eco do Andurrial, casamentos, bodas de ouro e funerais. Ouvir a Emissora
Nacional. Ir à feira quinzenal comer torresmos nas frigideiras encardidas por
toneladas de unto sem espreitar por cima do ombro à cata da asae de má memória
e péssima moda bruxelense ou bruxuleante. Cruzar-me com a Brízida, a Clarinha,
a Eulália e a Adosinda e não com a Cátia Vanessa, Sónia Andreia e Cláudia
Stéphanie…
Caro leitor, perdoe-me o estado
febril adregado em desvario de saudade (que não saudosismo), mas afinal que
semelhanças havia entre Viriato e Julius Caio? Entre D. João VI, Napoleão
Bonaparte e Wellington? Entre Aquilino, Ferreira de Castro, Agustina Bessa-Luís
e Rushdie, Pamuk e Vargas Llosa? Entre Agostinho Neto e Obama? Entre Oliveira e
Costa e Madoff? Entre Coelho e Merkel? Entre Gaspar e Lagarde?
Claro que é isso. A aldeia global
finissecular estragou uns quantos que andam por aí a lixar-nos a todos porque,
com o novo conceito, esfolamo-nos a trabalhar, pagamos para o fazer e nem
sequer conhecemos o patrão que pode ser qualquer Goldfinger ou Goldman sito nas Bahamas, Ilhas
Cayman, Bermudas, Turks e Caicos, Liechtenstein, Suíça, Ilhas
do Canal, Mónaco, Luxemburgo ou Ilha da Madeira… Fraude & fisco é seu
sobrenome.
Ah! Já me esquecia…. 63% dos
residentes nos estabelecimentos prisionais portugueses são de origem
estrangeira. Que o mesmo é dizer: vêm roubar-nos e nós depois ainda os mantemos
“à sombra”. E eu não sou xenófobo, apenas me apetece fazer um vigoroso manguito
do grande Bordalo em barro negro de Molelos…
Este
Editorial parece um desconcerto? Pois parece. Tal e qual a vida moderna.
Desconchavadamente moderna, dizem eles…»
Paulo Neto
in: Jornal do Centro de 14.12.2012