Avançar para o conteúdo principal

O que é que O Leitor de Dicionários tem a ver com Luís de Camões?

 


A propósito das comemorações do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões, que se estão a assinalar entre 10 de junho de 2024 e 10 de junho de 2026 (mais um ano do que o previsto, por decisão deste governo) aqui deixamos um excerto do romance O LEITOR DE DICIONÁRIOS.

Neste excerto entram na narrativa Luís de Camões e Os Lusíadas. O diálogo, entre a personagem principal e o seu professor de português, aconteceu nos anos 60 do século XX no Colégio Tomás Ribeiro em Tondela. 

Ei-lo:

«(…) Quando se tratou de começar a efetuar a abordagem à obra, o professor, que se considerava um grande camoniano, entusiasmou-se e, num discurso erudito, começou a falar de Luís de Camões e da sua obra,

- O maior poema épico português só poderia ser escrito pelo mais genial e universal poeta de língua portuguesa de todos os tempos. Por Luís Vaz de Camões, esse incomum e insigne homem de letras do século XVI.

E continuava o professor,

- Luís de Camões foi um extraordinário autor, um fervoroso português, um poeta flamejante que ia perdendo a vida para salvar a mais excelsa obra alguma vez escrita em Portugal, Os Lusíadas, esse épico poema, essa epopeia que narra de um modo tão sublime a heroicidade e a bravura dos portugueses durante os Descobrimentos. É um poema magnificente, dividido em Cantos…

E perante a apatia geral da turma, exceção feita a Suídas, que acompanhava atentamente o discurso e que se deleitava com cada uma das palavras proferidas, o professor percebeu que se deixara conduzir pelas emoções e que a turma não estava a percebê-lo. Foi então que decidiu começar a colocar questões, como forma de os despertar, de os interpelar, de tornar a aula mais interativa.

- E por falar em Cantos, sabem quantos Cantos têm Os Lusíadas?

Todos se entreolharam, encabulados, sem saberem o que responder, à exceção de Suídas, que, ante o silêncio dos colegas, disse,

- A obra tem dez Cantos e mil cento e duas estrofes, senhor professor. E cada estrofe tem oito versos e…

- Calma, calma, Alberto – atalhou o professor. – Só perguntei o número de Cantos. Mas, sim, é verdade. Este poema épico, inspirado nos clássicos, tem de facto dez Cantos e mais de mil estrofes – corroborou o professor, atirando com este valor aproximado, pois não tinha a certeza da quantidade exata.

- São mil cento e duas estrofes, ou seja, oito mil oitocentos e dezasseis versos, uma vez que cada estrofe tem oito versos – tratou de clarificar Suídas, ante a incredulidade dos colegas e do próprio professor, que estava piamente deliciado com aqueles pormenores avançados pelo seu aluno.

E, após alguns segundos de pausa, o docente retomou a palavra começando a falar na estrutura dos versos.

- Cada verso é uma inspiração, é uma construção tão perfeita como a mais bela das criações da Natureza. Cada verso, cada um dos oito mil oitocentos e dezasseis versos, como muito bem disse o Alberto – referiu o professor, passando a aceitar como bons os valores dados pelo seu aluno -, tem, exatamente, dez sílabas métricas. Ouçam bem, vou repetir, cada um dos versos tem dez sílabas métricas.

E o professor calou-se por segundos, para que os alunos absorvessem aquilo que ele ia dizendo.

Suídas, ante aquele silêncio e agora mais afoito, acrescentou assertivamente,

- Chamam-se versos decassilábicos, sendo a maioria decassílabos heroicos, pois são tónicos na sexta e na décima sílaba.

Pasmado e de boca aberta ante esta nova arremetida, e uma vez que a aula tinha chegado ao fim, o professor virou-se para Alberto e disse,

- Muito obrigado, Alberto, foi um fim de aula perfeito, retemperador.

Logo de seguida, olhando para a turma e antes de os mandar sair, atirou,

- Não imaginam a alegria que eu acabei de sentir. – E após brevíssima pausa, como que para estruturar a narrativa que ia aproveitar para fazer, disse de rajada: - Ponham aqui os olhos; chegou o momento de terdes vergonha. Digo-vos frontalmente, tende vergonha da perseguição que andais a fazer a este vosso colega. – Os apodos eram do conhecimento de todos e nem com o castigo exemplar a Vascão a situação ficara debelada. Prosseguindo, o professor olhou os alunos nos olhos e disse-lhes pausadamente: - Se não quiserdes seguir o seu exemplo de estudo não o façais, todavia tendes a obrigação de vos comportardes como homens com agá maiúsculo, de terdes educação. E nunca vos esqueçais de que só será respeitado quem se der ao respeito e respeitar os outros.

O facto é que, após esta admoestação e de várias dialéticas argumentativas nas aulas seguintes, entre o aluno e o professor, as palavras “marrão”, “caixa de óculos” e “corvo” deixaram de estar na ementa diária das alcunhas atiradas a Alberto (…).»

Comprar O LEITOR DE DICINÁRIO AQUI.

Mensagens populares deste blogue

Sermos David e Rafael, acalma-nos? Não, mas ampara-nos e torna-nos mais humanos!

  As palavras, essas, estão todas ditas. Todas. Mas continua a faltar-nos, a faltar-me, a compreensão. Uma explicação que seja. Só uma, para tão cruel desenlace. Da antiguidade até ao agora, o que é que ainda não foi dito? O que é que falta dizer? Nada e tudo. E aqui continuamos, longe, muito distantes, de encontrar a chave que nos abra a porta deste paradoxo. Bem sei que, quiçá, essa procura é uma impossibilidade. Que não existe qualquer via de acesso aos insondáveis desígnios. Da vida e da morte. Dos tempos de viver e de morrer. Não existe. E quando esses intentos acontecem em idades prematuras? Em idades temporãs? Tenras? Quando os olhos brilham? Quando os sonhos semeados estão a germinar? Aí, tudo colapsa. É a revolta. É o caos. Sermos David e Rafael, nestes tempos cruéis, não nos acalma. Sermos comunidade, não nos sossega. Partilharmos a dor da família, não nos apazigua. Sermos solidários, não nos aquieta. Bem sei que não. Mas, sejamos tudo isso, pois ainda é o q...

JANEIRA: A FAMA QUE VEM DE LONGE!

Agostinho Oliveira, António Oliveira, Agostinho Oliveira. Avô, filho, neto. Três gerações com um mesmo denominador: negócios, empreendedorismo. Avelal, esse, é o lugar da casa comum. O avô, Agostinho Oliveira, conheci-o há mais de meio século, início dos anos 70. Sempre bonacheirão e com uma palavra bem-disposta para todos quantos se lhe dirigiam. Clientes ou meros observadores. Fosse quem fosse. Até para os miúdos, como era o meu caso, ele tinha sempre uma graçola para dizer. Vendia sementes de nabo que levava em sacos de pano para a feira. Para os medir, utilizava umas pequenas caixas cúbicas de madeira. Fossem temporões ou serôdios, sementes de nabo era com ele! Na feira de Aguiar da Beira, montava a sua bancada, que não ocupava mais de um metro quadrado, mesmo ao lado dos relógios, anéis e cordões de ouro do senhor Pereirinha, e com o cruzeiro dos centenários à ilharga. O pai, António Oliveira, conheci-o mais tardiamente. Já nos meus tempos de adolescência, depois da revolu...

Ivon Défayes: partiu um bom gigante.

  Ivon Défayes: um bom gigante!  Conheci-o em finais dos anos oitenta. Alto e espadaúdo. Suíço de gema. Do cantão do Valais. De Leytron.  Professor de profissão, Ivon Défayes era meigo, afável e dado. Deixava sempre à entrada da porta qualquer laivo de superioridade ou de arrogância e gostava de interagir, de comunicar. Gostava de uma boa conversa sobre Portugal e sobre a terra que o recebeu de braços abertos, a pitoresca aldeia do Tojal, que ele adotara também como sua pela união com a Ana. Ivon Défayes era genuinamente bom, um verdadeiro cidadão do mundo, da globalidade, mas sempre um intransigente cultor do respeito pela biodiversidade, pelo ambiente, pelas idiossincrasias locais, que ele pensava e respeitava no seu mais ínfimo pormenor. Bem me lembro, aliás, das especificidades sobre os sons da noite que ele escrutinava, vindos da floresta, da mata dos Penedinhos Brancos – das aves, dos batráquios e dos insetos – em algumas noites de verão, junto ao rio Sátão. B...