Fiquei estupefacto, mas muito agradado, pelo detalhe da análise ao meu último romance, O LEITOR DE DICIONÁRIOS, efetuada pelo professor de Português, Fernando Amaral, do Agrupamento de Escolas de Sátão.
É um olhar abrangente e rigoroso, próprio de quem domina a arte de dissecar uma obra, detendo-se em pormenores e pontos de vista que eu próprio, o seu autor, nem sempre imaginei ou coloquei no texto com tal intencionalidade.
Resta-me, pois, agradecer, penhoradamente, ao Fernando Amaral a análise que me enviou e que, de seguida, aqui reproduzo com um sentimento de imerecimento.
Muito grato.
Ilustre escritor!
Antes de mais os
meus parabéns por mais um prémio literário “Cónego Albano Martins – 2024”.
Este livro começa
com um poema de Eugénio de Andrade, onde as palavras emergem, sendo estas o
pináculo, o expoente máxima da criação literária. Através de comparações e
metáforas anuncia-nos quão importantes são as palavras e mesmo algumas cruéis,
o ser humano não as ignora, é por elas obsessivo, como se pode inferir através
do comportamento de algumas personagens do texto, em especial a principal da
obra, Alberto.
O autor dividiu a
obra em 3 livros.
A história no
tempo e o tempo da história.
No primeiro livro
narra-nos a vida de Alberto até ao sumptuoso casamento com Felismina. Neste
livro o autor de forma sublime, assertiva e pormenorizada descreve a vida
estudantil e comunitária de Alberto no seminário de Fornos de Algodres e o seu
gosto obsessivo pelo significado das palavras. No capítulo 3 dá-se uma inversão
na vida da personagem, por questões de política e com vingança à mistura, foi
conotado com ligações à célula comunista. Nem com a ajuda do pároco, Alberto
não conseguiu prosseguir os seus estudos no seminário, sendo expulso no final
do segundo período de 1966. O autor realça o conluio entre a Igreja e a
política e a subserviência desta em relação àquela. A cobardia e a
subalternidade da Igreja que perante a
pressão política não procurou a verdade. Com a influência do abade da
freguesia, este com alguma similitude com o padre da época, Alberto foi frequentar como aluno interno o
nono ano no colégio Tomaz Ribeiro, em Tondela, tendo obtido a classificação de
dezoito valores no exame nacional de português, como aluno externo no liceu de
Viseu.
De seguida
frequenta o então sexto ano no liceu Nacional de Viseu, e com contrato de cama
e mesa fica hospedado em casa da D. Mariana, uma viúva de 42 anos, ainda muito
apetecível com os “seus seios alvos e sedosos”. Segundo o autor, D. Mariana,
após 4 anos de abstenção carnal, voltou à vida de prazer, como constatou de
surpresa Suídas “ pelos rumores e gritos abafados vindos do quarto da sua
ex-senhoria”. De Viseu segue para Coimbra a fim de cumprir o seu desígnio,
cursando Filologia Clássica, na faculdade de letras. Na cidade do Mondego nada
o seduziu nem os amores nem a política, somente obcecado por um lugar, a
biblioteca. Conclui o bacharelato no estio de 71 e em outubro de 72 parte como
militar oficial para Timor. Muito longe da sua terra natal, recebe a notícia da
morte do pai, que o vai marcar profundamente. No início de 75 começa a lecionar
no Liceu Nacional de Viseu em substituição, a sua escola por excelência. Aqui
conheceu a sua amada Felismina, sete anos mais velha que ele. Uma aproximação e
uma afetividade que se gerou, e que se deveu a uma rendição cultural mais do
que pelos atributos físicos de Felismina. Diferentes fisicamente, semelhantes
na partilha dos mesmos gostos pela arte, pela ciência, pela filosofia...e até
pela “beleza dos ferros forjados ... e dos gradeamentos”do banco Agrícola e
Industrial de Viseu. Aquilo que os unia era a razão da arte e não a razão do
sentimento ou simplesmente a intelectualidade.
Alberto também não era muito dado a abrir o cofre das suas humildes
origens comparativamente às de Felismina. Era muito recatado, não se dava a
conhecer, quando questionado sobre a sua origem, vivia uma espécie de angústia existencial, que o
transtornava. Se o amor não transbordava, o afeto e a ternura confluíram para
os dois darem enlace matrimonial num luxuoso casamento, no verão de 1977, com
boda servida nos jardins do hotel Grão-Vasco.
O segundo livro começa com o desaparecimento
de Alberto, em 27 de novembro de 2008, após trinta e um anos de casamento. Aqui
o autor, usando a sua experiência de antigo governador civil, narra e descreve
o desaparecimento de Alberto e de forma minuciosa relata as inúmeras
diligências feitas pelas diversas entidades oficiais para que o seu corpo fosse
encontrado. Primeiro no perímetro da sua terra natal, e após o seu varrimento
sem indícios claros, os esforços voltaram-se para a serra do Montemuro. Apesar
de todos os esforços e gastos, o corpo de Alberto não apareceu.
Em 2018, Felismina
por lei pode requerer a declaração de morte presumida do seu marido, pois já
tinham passado dez anos do seu desaparecimento. Aqui o autor introduz mais uma
nuance no romance, a “relação de intimidade” entre Felismina e Arnaldo, uma
vivência obscura e pecaminosa, que começara quando ainda Alberto estava no
reino dos vivos.
No terceiro livro
entra uma nova personagem, Rui Rodrigues. Este, vindo de Lisboa e já
aposentado, faz a aquisição de uma casa antiga na aldeia da Gralheira e aí
encontra a pasta de cabedal castanha de Alberto com um “computador portátil e
um maço de folhas datilografadas”. Estas páginas continham uma denúncia anónima
sobre a relação amorosa de Felismina com o Dr. Arnaldo e que Alberto já ia
pressentindo tendo em conta o que aconteceu “numa noite em que o desejo saiu de
controlo…Os sons abafados que se soltavam dos dois corpos, em movimentos
sôfregos no sofá da sala…”
Aqui o texto volta
a ficar ainda mais vivo e a agarrar mais
o leitor, pois o autor vai introduzir o livro “ O leitor de Dicionários” dentro
do próprio livro, uma história dentro da
própria história. Uma forma sublime de prender o leitor com a introdução
deste trama. Alberto estava a escrever e quase a concluir um livro com este
título, que Rui, de forma presunçosa e ambiciosa se vai apropriar,
intitulando-se autor da obra, acrescentando somente o final. Após algumas
averiguações no Google e não encontrando nada parecido, disse para consigo “ É
meu”, pois concluiu que o texto era original, e assim seria seu. Após esta
conclusão, encetou os procedimentos para a sua publicação, acordou com a
editora os termos e o cronograma. O
livro é lançado em finais de outubro de 2022, com sucesso reduzido para os
lados da capital, mas com grande êxito na cidade de Viriato, nomeadamente
aquando da sua apresentação na escola secundária Alves Martins, pelo facto de
esta instituição ser referenciada na obra amiúde, tal como outros lugares da
cidade. Nessa sessão o livro foi apresentado por uma professora de Português,
que com grande ênfase e exuberância se referiu ao livro, evocando as duas
personagens do romance, Alberto e Felismina, não deixando também de realçar
quão importantes são as palavras, e os limites da ficção e da realidade na
literatura. Tudo corria relativamente
bem nessa sessão até que uma professora de História, ex-colega de Felismina
intervém para referir que não concordava com a dissecação da vida de dois
colegas com detalhes da sua intimidade, e que tudo aquilo era uma vergonha,
considerando-a até uma “obra repugnante e abjeta”.
A machadada final
surgiu quando o diretor da revista “Letras e Artes, “decidiu efetuar uma
reportagem sobre o autor”, e às primeiras perguntas o jornalista apercebeu-se
“que algo estava errado”. Após algumas pertinentes questões sobre a obra, o
diretor concluiu rapidamente que estava perante um impostor.
Numa espécie de
narrativa encaixada, como outros segmentos narrativos na obra, e também quando
livro entra no próprio livro, Arnaldo ouve do seu amigo, Dr. Luís Amaral,
novidades sobre esta obra que circula em Viseu com grande sucesso, o que o
intriga. Compra o livro na FNAC, folheia-o, passa-lhe os olhos e o que lê
perturba-o, “...os breves excertos que leu não mais o deixaram em paz”. Após a
leitura da obra, Arnaldo confirma a veracidade do livro I, e fica intrigado com
o desaparecimento de Alberto, narrada no livro II. No rememorizar da sua
consciência encontrou um culpado da morte de Alberto, ele próprio. Com este
peso sobre si, não resistiu à morte, e um aneurisma abateu-o sem dó nem
piedade.
O epílogo narra e
descreve a fuga para a frente de Rui Rodrigues. Apesar de alguns contratempos e
peripécias, enquanto ia a caminho da morte traçada, nada lhe alterou rumo.
Alberto não aguentou a pressão da sua editora, que lhe ia mover um processo em
tribunal, pelo facto de “dois terços da obra serem um plágio…”. Então amarrou
tijolos às pernas e lançou-se no rio Bestança, o mesmo onde se tinha suicidado
Alberto, só que este, “enchendo os bolsos do seu sobretudo com pesos da balança
decimal do seus pais”.
O Leitor de
Dicionários é um livro com palavras, à volta das palavras, que podiam ter sido
brilhantes, com frescura, de beijos, com luz, mas foram punhais, incêndio,
noite, destruição e morte. Na obra estão personificados todos os nomes, e nas
personagens, Alberto, Arnaldo ou Rui, que foram vítimas das palavras, estamos
nós, que por vezes também não as sabemos usar e desfrutar na sua plenitude.
O texto é magnífico, esplêndido,
extraordinário que gira à volta da importância das palavras que usamos e como
as usamos. São como a comida, é preciso mastigá-las e saboreá-las sem pressa
para chegarmos ao seu profundo significado, e até o modo como as pronunciamos
requer a nossa atenção. Podemos exemplificar e constatar no conto de Vergílio
Ferreira “ A Palavra Mágica”, a importância de conhecermos o significado das
palavras e a sua fonia, pois dessa forma, os habitantes daquela aldeia não
teriam tido as nefastas consequências como veio a acontecer, se soubessem o
significado e a pronúncia da palavra “inócuo” - “ alguém que não causa
problema”.
A obra começa e acaba focando-se a relevância das mesmas e como refere o poema
inicial é preciso saber conhecê-las e interpretá-las para que sigam o seu
caminho.
O Leitor de Dicionários é um hino às
palavras, ao poder das palavras. Todo o texto é palavra, é verbo, como se
confirma no Génesis, “no princípio era o verbo”, a palavra, tudo começa e acaba
na palavra.
É uma obra magnífica, surpreendente,
onde ficção e a realidade ora se fundem ora se intercalam, comprovado pelo
facto de o livro se encontrar à venda (no livro III), antes de ser publicado na
realidade.
O livro é de fácil leitura porque é excelente, ele leva-nos a fazer o seu caminho
de forma muito prazerosa e curiosa, pois o leitor quer ver o seu final.
A
sua linguagem é linear, corrente, o que dá ao leitor uma perspetiva continua do
enredo sem dispersão.
O
Leitor de Dicionários é um romance de personagem (Alberto), de espaços
(lugares) e autobiográfico (autor).
O
texto, como já foi referenciado, oferece-nos uma trama linguística magistral,
que servem para embelezar o texto, vejamos alguns exemplos, próprio do estilo
do autor, “- Se não for muito trabalho, pode ser misturadinho, com cebola e
chouriço” – gostos e frase atribuída ao pároco da época.
-
O autor quis tanto superlativizar a sabedoria de Alberto que colocou o
discípulo acima do mestre, a ter mais certeza do que o mestre, quando
questionado sobre “Os Lusíadas”, respondeu que “- A obra tem dez cantos e mil
cento e duas estrofes…” e o professor corroborou, atirando com este número
aproximado, pois não tinha a certeza da quantidade exata.” O Suídas estava bem
mais convicto.
Podemos
também destacar alguns recursos expressivos,
nomeadamente algumas metáforas, vejamos na pág 31, “com olhos marejados de
lágrimas”; na pág.104 “...Alberto Suídas ficou com água na boca…”; na pág. 165,
“O flocos eram já farrapos de neve…”; também nesta pág. “O sol...começava a
tombar sobre o horizonte...”
A
corrupção e as cunhas também não escapam no livro, como é verificável na pág.
83 “Só com a água benta das cunhas que o pai meteu ela conseguiu passar”; “com
as influências do primo, Alberto acabou por ser aprovado”.
Linguagem
popular “Agora tens de mercar um carro, filho”, disse a mãe de Alberto, na pág.
87; um pastor, na pág. 164, afirma que “ é d’algum dos donos das aventoinhas” e
na página seguinte “Eh pá, se este gaijo não for embora rapidamente não tira
daqui o carro rapidamente”.
O
autor/narrador vai aparecendo ao longo da obra, ora como licenciado em direito
/ geografia, ora como antigo governador civil.
Sobre a
personagem principal – Alberto.
Nasceu por volta de 1950. Ingressa no seminário
menor de Fornos de Algodres e no final do segundo período, no ano de 1966, é
expulso e ingressa no colégio Tomaz Ribeiro, em Tondela, onde completa o 5º
ano. A seguir vai para o liceu nacional de Viseu, completando aí o sétimo ano em
1968 e segue para a faculdade de letras – Coimbra, para cursar Filologia
Clássica. Termina o Bacharelato em 71, e em 72 parte como oficial para Timor.
Tinha um corpo franzino, pesava 68 quilos e um
pouco mais baixo que sua esposa, Felismina, que tinha 1,71m. No entanto, e
apesar de serem muito diferentes fisicamente, convergiam na cultura, e mesmo
sendo mais velha sete anos do que ele, Alberto e Felismina casaram no verão de
1977. Relativamente a Felismina, Alberto “ficara atónito e embevecido com ela,
depois de a ouvir dizer aquelas expressões tão suculentas sobre a Grécia”, pág.
104, ou seja, aquilo que os uniu foi o amor que partilhavam pela arte. Rui
Rodrigues refere-se a ele como “Uma pessoa inteligente, com uma personalidade
tão sombria, com uma vida tão difícil, merece ser feliz”. À pergunta de Rui
Rodrigues a um idoso, conterrâneo de Alberto, este responde que
“Ele era pouco falador, mas muito inteligente e boa pessoa...”
O seu desaparecimento e morte / suicídio teve lugar
no dia 27 de novembro de 2008, afogado no rio Bestança.
Relativamente à sua identidade e orientação sexual
de Alberto não há certezas claras, como se infere das palavras da pág. 44
“Alberto não manifestava qualquer apetência por bailes e festas e ninguém o via
a conversar com nenhuma jovem”. A sua realização era a sua relação com as
palavras. Noutra passagem, na pág. 77 “...a comunhão entre estes dois oficiais
foi perfeita, com Alberto a começar a sentir pelo seu camarada de armas um
grande carinho, uma enorme ternura, uma paixão e um prazer…”; “O capitão
encantava-o, atraía-o”. Como também já foi referido, entre Alberto e Felismina
o amor não abundava, o casamento presume-se que foi por interesse dos dois.
Por fim, refiro somente que esta ilustre obra é um
original impactante pela surpresa que causa ao leitor, aconselhando assim e
naturalmente a sua leitura.
Muitos parabéns e até ao próximo!
Fernando Amaral