Senhora das Candeias – a rir, inverno a vir; a chorar, inverno a passar

Foto da capela da Senhora do Barrocal/Candeias - Carvalhal de Romãs (Festa de 2018)

[Mais um magnífico texto de Louro de Carvalho no blog ideiaspoligraficas.blogspot.com]

Popularmente o 2 de fevereiro, quarenta dias depois do Natal, era o dia da Candelária ou da Festa da Senhora das Candeias pelo facto de tradicionalmente, com a apresentação do menino Jesus no Templo, se relevar a purificação de Nossa Senhora e se fazer a bênção das velas e subsequente procissão antes da Missa e para a Missa.

Segundo Dom António Couto, Bispo de Lamego, as Igrejas do Oriente conhecem-na por “Festa do Encontro (Hypapantê) e dos Encontros: encontro de Deus com o seu Povo agradecido, mas também de Maria, de José e de Jesus com Simeão e Ana e também connosco”.

É uma das mais antigas festas da Virgem Maria. Introduzida em Jerusalém no século IV, encontramo-la em Roma no século VI. A procissão começou a fazer-se com Sérgio I no final do século VII, mas a bênção das velas entrou no missal no século X. Embora fosse considerada uma festa de Maria, o seu objeto principal era – como é – a apresentação de Jesus no Templo, enquanto a purificação da Virgem ficava em concomitância. Assim, a bênção das velas proclama Jesus como luz do mundo, a procissão evoca a caminhada de Maria e José para o Templo, a cera das velas simboliza a carne de Jesus, o pavio representa a sua alma e a chama espelha a divindade. Por isso, a respeitosa conservação da vela benzida em nossas casas pode, se a fé tiver a força da moção de montanhas, atrair os favores divinos e afugentar as desgraças.

Ainda bem que a reforma do calendário litúrgico estipulada pelo Concílio Vaticano II recentrou a festa em Cristo e a denominou Festa da Apresentação do Senhor, mantendo a vertente maternal de Maria e custodiante de José.

Sujeito à Lei (Gl 4,4), Jesus, como filho varão primogénito, é apresentado a Deus, a quem pertence nos termos da Lei, segundo a qual todo o filho primogénito, macho, tanto dos homens como dos animais, pertence a Deus (Ex 13,11-13), bem como as primícias dos campos (Dt 26,1-10). E o filho primogénito varão, pertença do Senhor, para voltar para casa com os pais, era resgatado com a oferta de 5 ciclos. Por outro lado, a mulher, após o parto dum filho varão, tinha de esperar 40 dias para lhe ser lícita a entrada no Templo, no termo dos quais devia oferecer um cordeiro e uma pomba ou uma rola e, se fosse pobre, como era o caso de Maria e José, ofereceria em vez do cordeiro, uma pomba ou uma rola. Maria, porque era virgem no parto e o seu Filho é Deus, não estava obrigada a esta lei, mas quis sujeitar-se a ela como exemplo de obediência, humildade e discrição.

Assim, para cumprir a Lei de Deus, 40 dias após o seu nascimento, Jesus é levado pela primeira vez ao Templo para ser consagrado ao Senhor (o consagrado nunca deixaria de pertencer ao Senhor, sendo o resgate necessário por motivo educacional e para ter uma vida normal), onde, pela primeira vez, se deixa ver como a Luz e esperança do mundo.

O trecho do Evangelho de Lucas proclamado e escutado nesta festa (Lc 2,22-40) põe em cena o velho Simeão (nome que significa “escutador”), que vive atento e à escuta e que o Evangelho apresenta como homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Ora, o velhinho, de extremosa atenção e coração vigilante, veio ao Templo impelido, não por qualquer outra energia (água, vento, carvão, petróleo ou derivados, eletricidade, energia nuclear, força humana…), mas pelo Espírito (“en tôi pneúmati”). Um exemplo para nós, que badalamos o nosso protagonismo e vontade de poderio, não dando espaço e tempo à brisa suave, nascente e fecunda do Espírito, que sopra donde quer e renova todas as coisas.

Ao ver aquele Menino e reconhecendo nele o Messias, recebeu-o braços e bendisse a Deus, pelo que os Padres gregos chamam a Simeão “Theodóchos” (“recebedor de Deus”). E Simeão entoa feliz o canto do seu entardecer: “Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!” (Lc 2,29-32).

O cenário apresenta uma contracenante, a velha Ana (que significa “Graça”), toda cheia de graça e de esperança. É profetisa, pois anda sintonizada, com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada. É filha de Fanuel (que significa “Rosto de Deus”) e é da tribo de Aser (que quer dizer “Felicidade”). Também Ana, com tanta intimidade com Deus, teve o condão de ver o Menino e, cheia de alegria, “falava dele a quantos esperavam a libertação de Jerusalém” (Lc 2,38). Enfim, Simeão, que esperava e Ana, que anunciava, parecem sintetizar toda a Escritura e espelhar o perfil do Consagrado, o Nazîr, um nome passivo e recetivo, que significa “totalmente dedicado a Deus” e, por isso, conduzido por Ele para ruminar emotivamente o acontecimento de Deus.

Em Dia Mundial da Vida Consagrada, instituído por São João Paulo II e celebrado a 1.ª vez em 1997, é de refletir que a consagração de Jesus aquando da sua apresentação no Templo é a antecipação da sua verdadeira consagração na cruz, mercê da qual nos consagramos com Cristo, em Cristo e por Cristo no Batismo. Nesta dimensão batismal todos/as os/as cristãos/ãs são consagrados/as e devem viver ativamente como tais. Outros há que o Sacramento do Ordem consagra a Cristo para o serviço ministerial de liderança – bispos, padres e diáconos. E há aqueles e aquelas – leigos ou não – que voluntariamente assumem os valores evangélicos da pobreza, obediência e castidade como testemunho da excelência e radicalidade do Reino.  

Todos, cada um na sua condição, são chamados a viver esta festa da luz e a exultar de alegria no Senhor. Hoje, aqui e agora, somos nós que nos chamamos Simeão e Ana, recebendo nos braços o Senhor que é a Luz das nações (“phôs eis apokálypsin ethnôn”: Lc 2,32) e ficando a pertencer à família da Felicidade e a viver perto de Deus, face a face com Ele, seus atentos escutadores, movidos pelo seu Espírito, seus recebedores e anunciadores de Deus. E rezamos para que os que se ofereceram em consagração especial vivam cada vez mais face a face com Deus e deem testemunho deste dom no mundo tão incerto, coisificado e contraditório.

Para isso, o Senhor, enviado o seu mensageiro, como dizem Malaquias 3,1-4 e Hebreus 2,14-18, vem purificar-nos, mas sobretudo sentar-se, caminhar connosco, em tudo semelhante a nós, seus irmãos, e pôr-nos em comunhão com Deus.

Por isso, não nos conformando com a bitola deste mundo (cf Rm 12,2), hemos de viver em alta fidelidade, sempre renovada dedicação e amor sempre novo, levados pela mão de Maria, a Mãe da Alegria, que nos ensina a subir e a escadaria do céu, que para nós foi concebido e criado.

Por tudo, somos instados a proclamar com o Salmo 24, o Senhor do Universo e Rei da Glória, que entra no coração da nossa fragilidade, que se torna o seu Templo. Na verdade, as portas do seu Templo, as da nossa vida, são convidadas a abrir-se e a levantar-se para que possa entrar o Rei, Senhor dos Exércitos. Com efeito, Deus criou o mundo e é o seu Senhor, pelo que hemos comparecer junto de Deus e ser interrogados sobre o que fizemos, e Deus vem para o que é seu, a que tem o direito e a vontade de ter livre acesso.

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O Papa Francisco, na homilia da Missa a que presidiu a 2 de fevereiro na Basílica de São Pedro, com membros dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, sublinhou que Simeão “esperava a consolação de Israel” (Lc 2,25) e que, tendo esperado com paciência,  o cumprimento das promessas do Senhor, subiu ao templo, enquanto Maria e José carregavam Jesus, e acolheu o Messias nos braços.

E, enaltecendo a paciência de Simeão, o Pontífice refere que o escutador de Deus “aprendeu na oração que Deus não vem em acontecimentos extraordinários, mas faz o seu trabalho na aparente monotonia dos nossos dias” e “nas pequenas coisas que realizamos com tenacidade e humildade procurando cumprir a sua vontade”. E, considerando que o iluminado pelo Espírito “não se cansou com o passar do tempo”, pois, embora se tenha sentido, às vezes, “magoado, desapontado” ao longo da sua dilatada vida, não perdeu a esperança. Antes, manteve-se vigilante até que, finalmente, “os seus olhos viram a salvação” (cf Lc 2,30: “eîdon hoi ophthalmoì mou tò sôtêrión tôn laôn”).

Na verdade, Simeão recebeu o dom da paciência da oração e da vida do povo, que sempre reconheceu no Senhor o “Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e rico em graça e fidelidade” (Ex 34,6; cf Sl 86,15), o Pai que, face à rejeição e infidelidade não se cansa, mas “é paciente por muitos anos” (vd Ne 9,30), para dar uma e outra vez a possibilidade de conversão.

Assim, segundo o Papa, a paciência de Simeão “é um espelho da paciência de Deus”, sendo que Deus, com a sua paciência, “impele-nos à conversão” (cf Rm 2,4) e “responde à nossa fraqueza, para nos dar tempo para mudar”. Depois, a paciência de Deus revela-se sobretudo no Messias que Simeão tem nos braços: o Pai que nos mostra misericórdia e nos chama até a última hora, apenas exige “o impulso do coração” e, abrindo sempre novas possibilidades, deixa crescer o grão bom sem arrancar o joio (vd Mt 13,24-46), o que é, para nós, motivo de esperança: “Deus espera-nos sem nunca se cansar”.

E é à luz da paciência de Deus que deve gizar-se a nossa paciência. Não se trata da mera tolerância à dificuldade ou da simples resistência fatalista à adversidade. Contra a ideia de que a paciência seja sinal de fraqueza, é preciso acentuar que é, antes, “força de alma que nos torna capazes de ‘carregar o fardo’ dos problemas pessoais e comunitários”, nos leva a acolher a diversidade do outro, nos faz perseverar no bem e nos mantém a caminho quando o tédio e a preguiça nos invadem.

E Francisco indica três lugares de realização da paciência: a vida pessoal; a vida comunitária; e a relação com o mundo.

No quadro da vida pessoal, frisa o Papa que, chamados um dia pelo Senhor, oferecemo-nos a Ele “com entusiasmo e generosidade”. Porém, ao longo do caminho, com as consolações, vêm as deceções e frustrações, enfraquece o fervor da oração. Ora, aí devemos fazer o autoapelo à paciência para connosco sabendo “esperar com confiança os tempos e os caminhos de Deus”, que “é fiel às suas promessas” e fugir da “tristeza interior” qual “verme que nos devora por dentro” tornando-nos impermeáveis à ação de Deus.

A nível da vida comunitária, o Santo Padre, chama a tenção para o facto de as relações humanas nem sempre serem pacíficas, sobretudo aquando da compartilha dum projeto de vida ou duma atividade apostólica, surgindo conflitos que não têm solução imediata. Aí há que não julgar precipitadamente as pessoas e as situações, mas “saber distanciar-se” procurando “não perder a paz” e “esperar o melhor momento para esclarecer-se na caridade e na verdade”. Com efeito, não podemos fazer um bom discernimento, se o coração estiver agitado e impaciente. E diz o Papa que o Senhor “não nos chama para sermos solistas, mas para fazermos parte de um coro, que às vezes se choca, mas cujos componentes devem sempre tentar cantar juntos”.

E, no âmbito da paciência com o mundo, Francisco, apresenta-nos o exemplo de Simeão e Ana, que privilegiavam, em seus corações, o cultivo da esperança anunciada pelos profetas, mesmo que lenta em se concretizar e crescendo “dentro das infidelidades e ruínas do mundo”. Não cantavam o lamento fatídico pelas coisas erradas, mas “aguardavam pacientemente a luz nas trevas da história”. Ora, como assegura o Pontífice, “precisamos dessa paciência para não ficarmos prisioneiros da reclamação”. Não pode suceder que “à paciência com que Deus trabalha o solo da história e o solo do nosso coração”, nos oponhamos com a “impaciência de quem julga tudo de uma vez: agora ou nunca”.

E, considerando que “a paciência nos ajuda a olhar com misericórdia para nós mesmos, para as nossas comunidades e para o mundo”, o Papa aconselha a que nos interroguemos: “Acolhemos a paciência do Espírito na nossa vida? Em nossas comunidades, carregamo-nos nos ombros e mostramos a alegria da vida fraterna? E, para o mundo, cumprimos nosso serviço com paciência ou julgamos com severidade?”. Para tanto, face aos desafios para a vida consagrada, são necessárias “a coragem e a paciência para caminhar, para explorar novos caminhos, para buscar o que o Espírito Santo nos sugere”, o que “é feito com humildade, com simplicidade” e coragem, “sem grande propaganda, sem grande publicidade”, sem murmuração e tagarelice, que destroem as comunidade, mas com sentido de humor e de amor.

Tudo isto exige uma boa dose de meditação (sobre o fulgor da luz e o sentido da pertença a Deus e ao seu povo), oração (que almeje que se faça a vontade do Pai), contemplação (orientada pela escuta da Palavra e pela descoberta dos sinais de Deus no mundo) e ação (no sentido de que todos e cada um e tornem luzeiros de Deus e testemunhas da sua paciência e misericórdia par com cada pessoa, mormente as que mais sofrem).

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Assim, depois que os decisores políticos “salvaram” o Natal e enterraram ano velho e o povo “salvou” o Presidente, parece que a Senhora das Candeias a chorar fará que esteja a passar o inverno da pandemia que tanto incómodo traz ao povo, ceifou tantas vidas e encalacrou muitas outras. É esta a esperança que não pode morrer, porque firmada na paciência de Deus espelhada em Simeão. 

2021.02.03 – Louro de Carvalho