Lapa, terra onde se exprime a fé – I


[Texto de Louro de Carvalho que pode acompanhar em ideiaspoligraficas.blogspot.pt]

O Santuário da Senhora da Lapa fica na freguesia de Quintela, do concelho de Sernancelhe que pertence à Diocese de Lamego e ao Distrito de Viseu. Este Santuário granítico, que remonta a 1498 (já vão 523 anos), alberga dentro um enorme penedo que faz uma gruta ou lapa, onde, como reza a história, ali foi encontrada uma imagem da Virgem Maria após mais de 500 anos escondida na gruta onde as irmãs perseguidas a depositaram. E o curioso é que pela abertura do penedo, que é muito estreito e sinuoso em altura, diz-se que passa o gordo e passa o magro, e parece que assim é com algum jeitinho na barriga.

A Lapa é uma terra de fé, um sítio de mistério natural e de alcance transcendental. De qualquer ponto que o circunstante lance o olhar, de perto ou de longe, encontra como ponto de contacto ou a torre da igreja, um cruzeiro ou mesmo um dos quatro consagrados miradouros. Está a povoação situada quase no cimo da serra com o mesmo nome, a 915 metros de altitude. Localiza-se junto às nascentes do rio Vouga, na freguesia de Quintela, concelho de Sernancelhe, diocese de Lamego, distrito de Viseu.

Dali partiram, por ali passaram e passam muitas pessoas simples e personalidades ilustres que testemunham a dureza da vida espelhada na dureza daquela graniticidade.

Como tudo começou?

Joana, a muda pastorita de Quintela, nunca sonhara que a imagem da Senhora da Lapa, a nena que guardava ciosamente na cestinha da merenda, fosse motivo para que à serra ou ao Santuário acolhessem milhares de romeiros, tantos que houvessem de a assustar. A história da Lapa inicia-se nos finais do século XV, mais propriamente no ano de 1498, segundo uns, ou 1493, segundo outros (A 10 de junho de 1993, Dom António Xavier Monteiro, Bispo diocesano, começava a homilia: “Foi há 500 anos! Quinhentos anos é muito tempo…”). Percebido o sinal miraculoso, os romeiros empreenderam a espontânea construção duma capela; e, a seguir, uma proteção para os devotos que faziam a romaria à volta da gruta inserida no enorme fraguedo. Isto da sua história passou-se assim:

O célebre e hábil general mouro, Al-Mançor, pelo ano de 982, transpôs o Douro para a margem esquerda. Havendo destruído Lamego, progrediu para Trancoso. No trânsito arrasou o Convento de Arcas, onde martirizou muitas das religiosas, entre as quais, Comba Ozores, a superiora.

Atravessada a serra de Pera, chegaram ao convento de Sisimiro, sito na atual Quinta das Lameiras, freguesia de Pinheiro, concelho de Aguiar da Beira. Parte das religiosas sofreram o martírio, outras escaparam levando consigo uma imagem de Nossa Senhora, procurando abrigo nos matos por onde se embrenharam. Acharam a gruta ou lapa, onde guardaram a dita imagem que ali resistiu à agrura dos séculos, durante uns 515 anos.

Em 1498, uma pastorinha chamada Joana, muda de nascença, da freguesia e lugar de Quintela, um dia, andando a guardar o gado de seus pais, lembrou-se de entrar ali na gruta e encontrou a santa imagem que meteu na cesta onde guardava as maçarocas e a merenda. A imagem era de pequena dimensão, mas muito formosa. E a pastorinha guardou-a e enfeitava-a como podia e sabia, com as mais lindas flores que topava nos campos ou no monte. Ao voltar a casa, no fim do dia, cuidava da roupa da imagem. As ovelhas, apesar de fartas e nédias, eram apascentadas quase sempre nos mesmos lugares, o que motivou acusações por parte de outrem à mãe de Joana. Tudo isto e as teimosias da filha a fizeram enervar e, sem mais, tirou-lhe a imagem, que teve por uma vulgar nena ou boneca, e atirou-a ao lume. A menina, transida de pavor, gritou; “Tá! Minha Mãe! É Nossa Senhora! Ai! Que fez?”. A fala começou a prendar irreversivelmente a mocinha pastora e a mãe ficou com o braço paralisado, transe de que se curou com a oração de ambas. A imagem foi levada para a Lapa, sob a orientação do percurso por Joana e todos a acompanharam. Porém, tal não terá sucedido sem que antes o cura de Quintela houvesse tentado a entronização da veneranda imagem no interior da Igreja Paroquial, donde a mesma imagem desaparecia de modo insólito e misterioso. Para abrigo da imagem de Nossa Senhora e para resguardo temporário dos fiéis, sobretudo na época de maior afluência destes, foi construído um Oratório e levantadas algumas barracas. O Oratório e barracas adjacentes estavam sob a jurisdição do reitor de Vila da Rua, que obteve do Ordinário diocesano autorização para ali celebrar missa.

Foi este o princípio da localidade de Lapa, onde por força destas circunstâncias começaram a edificar-se as principais habitações e bem assim as subsequentes, o que transformou um lugar inóspito num aglomerado que logrou alcançar numa certa projeção e que hoje mantém a atmosfera de mística espiritualidade e de estranha grandeza.

Entretanto, como a Companhia de Jesus se instalasse em Portugal e gozasse de gerais simpatias, foi permitido aos Jesuítas, a título transitório, que dirigissem o culto da Lapa, auxiliando os fiéis e atendendo-os de confissão. Porém, no ano de 1575, o padroado da Abadia de Vila da Rua passa a jurisdição e posse da Coroa Portuguesa, com o já antigo curato de Quintela, que lhe estava adstrito e em cujo limite se encontrava a Ermida da Senhora da Lapa. Em 1576, sob autorização do Papa Gregório XIII, Dom Sebastião deu a Igreja da Rua, com metade dos seus réditos, ao Colégio de Jesus, que os Jesuítas fundaram em 1542 e possuíam em Coimbra, ficando-lhes a pertencer também o Oratório da Lapa. Efetivamente, Dom João III tinha-lhes entregue o Colégio das Artes, com a promessa de um dote, para côngrua sustentação, promessa que não satisfez na totalidade, cabendo o ónus do cumprimento ao seu sucessor. E, vindo estabelecer-se na Lapa, os Jesuítas dão corpo, com o auxílio de particulares, à edificação do Santuário e do Colégio, obras iniciadas no século XVI. Porém, segundo Gonçalves da Costa, a primeira tentativa de transformação da Lapa num Santuário mariano dentro de um ambiente de maior comodidade, deve-se ao Padre João Alvares, em 1610, aquando da sua vinda de Roma com o cargo de visitador dos Jesuítas Portugueses.

Dentro da Igreja, ou melhor, junto dela, mandou levantar, em 1586, Pedro do Sovral, Senhor do Morgado de Sernancelhe, a atual capela do Santíssimo Sacramento, para abrigo do túmulo de família. Porém, antes de ter a função hodierna e de albergar aquele altar de boa talha joaninha, serviu de sacristia.

O Colégio, junto ao Santuário, começou nos finais do século XVII, mais exatamente em 1685 e ficou sempre obra não acabada. O complexo religioso e escolar afirma-se progressivamente como um prestigiado e prestigiante santuário de peregrinação nacional e um notável polo de aquisição e consolidação de cultura.

O colégio locupleta-se de escolares. E a Senhora da Lapa impõe-se como um centro de irradiação do culto à Virgem e como fermento de mais povoações, cidades, dioceses e santuários um pouco por todo o mundo, sobretudo pelas inúmeras estâncias por que andarilharam os padres jesuítas.

O Santuário

O Santuário da Lapa, que abriga na capela-mor, onde pontificava o altar do Menino Jesus da Lapa, o rochedo milagroso com a imagem da Senhora que seduzia cativantemente os homens e as mulheres de crença inabalável, começou a atrair, em vários momentos do ano, os peregrinos, que se ali se deslocavam em romaria para impetrar graças, obter a propiciação pelas faltas humanas e agradecer os favores do Altíssimo – tanto em jeito pessoal como em convénio coletivo. De facto, as pessoas e as famílias eram torturadas pelos malefícios da doença, do azar ou da má sorte; e os povos, pelos efeitos das pestes e pragas que lhes devastavam as culturas, os animais ou, pior ainda, os parentes, os benfeitores, os vizinhos e os amigos     

Assim, debaixo da rocha que forma a gruta onde apareceu a imagem de Nossa Senhora, está o altar da Senhora da Lapa ladeando irregular e mui estreita passagem que vai dar ao presépio, com centenas de figurinhas, da escola do escultor conimbricense Machado de Castro. É crença supersticiosa que quem tiver a alma atafulhada de pecados não consegue passar naquele angusto canal granítico. O altar da Virgem deixa ver o painel de prata e os mármores de Carrara. Nestes tempos de pandemia, está barrado ao acesso ao altar da Virgem e ao predito canal granítico. No entanto, pode observar-se desde a entra na gruta a imagem da Senhora da Lapa e dirigir-se-lhe a prece mariana e com a Virgem rezar a Jesus.

E a servir de altar-mor segundo o ordenamento tradicional do espaço das igrejas fica o altar do Menino Jesus (o primeiro a ser construído como altar e a ter direito a talha dourada), cuja imagem surge empolgante em trajes napoleónicos. Esse altar, apesar de aferrolhado por forte gradeamento de ferro, mostra-se protegido na inusitada lapa e ladeado por quadrinhos supostamente de Josefa de Óbidos. Também, sob a pequena estátua da Mater Dolorosa, incrustada em edícula na rocha à direita de quem entra na gruta, se divisa o pequeno mas simbólico altar da Senhora da Boa Morte, rodeada do compungido colégio dos apóstolos que contemplam a dormição ou trânsito da Senhora, sua mãe e rainha.

A aludida Capela do Santíssimo Sacramento, que aloja o túmulo do primeiro Conde da Lapa, fica em frente do mencionado presépio, tem um rico altar de talha joanina e forma um espaço de recolhimento que insta à reflexão e ao silêncio orante. 

É notável a cenografia de que se revestem os altares laterais do corpo da igreja.

Assim, junto do arco-cruzeiro, do tradicionalmente denominado lado da Epístola, vê-se o altar de Santo António de Lisboa, em que a Virgem, circundada de anjos, lhe entrega o Menino com a indicação de um anjo a relembrar a frase joânica do 4.º Evangelho: “Eis a Tua Mãe!” (cf Jo 19,27). Do tradicionalmente denominado lado do Evangelho, temos o altar do Calvário ou da Crucifixão, em que, momentos depois de o Senhor expirar, o seu lado é trespassado pela lança dum soldado “romano”, que a tradição dizer chamar-se Longuinhos, na presença de outros que se entretêm a repartir entre si as vestes do Crucificado e a jogar os dados sobre a sua túnica inconsútil, a ver a quem viria a pertencer.

Mais ao fundo, do mesmo lado do altar da Crucifixão, o altar de São José, construído em 1793 em talha simples, representa a passagem deste homem que, após o cumprimento da sua discreta, mas dedicada e insubstituível missão, recebe a coroa da justiça, cuja descida é determinada pelo anjo do tempo medido pela ampulheta ali visível. Entretanto, o Pai Celeste prepara tudo para que se acolha no Reino eterno este homem justo que passou pelo mundo como inefável brisa suave, ligeira e nova, suscitada e movida pelo Espírito. E, do lado oposto, resta o altar da Senhora da Soledade, também de 1793 e em talha simples, em que a Virgem Mãe, aos pés da cruz, contempla os instrumentos da Paixão e o corpo do Senhor está sepultado ante a Senhora lacrimosa ao pé de João Evangelista, José de Arimateia, Nicodemos e as santas mulheres.

Por detrás da capela-mor e no compartimento que rodeia a lapa, era a Casa do Peso, assim chamada por nela estarem as balanças aonde as pessoas se dirigiam para as próprias pesagens, com vista à futura entrega do mesmo peso em trigo em cumprimento da promessa deste teor à Senhora. Pode ver-se lá suspenso o grande caimão, um gigantesco ex-voto que testemunha o lendário milagre da mulher, das redondezas ou das bandas do Oriente, que se chamou, aflita, à Senhora, que lhe terá inspirado o arremesso dos novelos de lã de que dispunha para que, havendo-os engolido, ficasse engasgado e a mulher fosse liberta do perigo.

Tesouros sem conto, peso e medida espelham a generosidade ou o brio de crentes anónimos ou grados, gente simples ou homens cultos, populares ou nobres, clérigos ou altas personalidades das casas reais. De notar são tais generosidades que foram criando e avolumando o rico espólio de paramentos de pratas que exorna de modo excelente o tesouro da Fábrica do Santuário.

Na sacristia pode apreciar-se belo paramenteiro e seis ex-votos em pedrelas de notável interesse e acentuado valor. Muitos outros quadrinhos há aqui como no concelho, a atestar a devoção e as graças que impenderam sobre as necessidades e orações dos crentes, nos finais do século XVIII, um pouco por todo o século XIX e ainda pelo século passado.

Da sacristia, diz Monsenhor Arnaldo Cardoso que é um amplo e irregular quadrado, com duas portas e duas janelas, cujas paredes são de boa cantaria, ressaltando as peças de mobiliário, confecionado no Porto, segundo informação do Padre António Cordeiro, que ordenou a encomenda de paramentos e armários, a pagou e mandou colocar tudo na ‘sacristia nova’ – e a quem certamente “se devem os quadros pintados, com as respetivas molduras”.

A igreja, vista do exterior ostenta uma frontaria com o triângulo pretensamente apoiado em duas colunas embutidas no muro frontal; e, à cabeceira, por detrás do passadiço que dá para o colégio, o campanário com os dois sinos que se encarrega de dar as horas e de chamar os devotos para os ofícios culturais.

No fraguedo que medeia entre a cabeceira da Igreja e o caminho que dá para a zona das lavadeiras, junto a lenteiros e hortas, onde borbulha uma das fontes nascentes do Vouga, estão três cruzeiros graníticos, qual remate de via-sacra de rua a constituir um calvário rural, aí do século XVIII. A onda destruidora que às vezes passa por estes lugares fizera desaparecer os braços das cruzes. A Câmara Municipal, quando procedeu às obras de saneamento básico e de beneficiação dos arruamentos da Lapa e envolvente do Santuário repôs a integridade das cruzes.***

A Lapa é, pois, terra de fé, de história, de cultura e de arte. E, embora presa aos limites do tempo e da rusticidade, é testemunho da generosidade sofrida e solidária a marcar a memória coletiva e a constituir forte herança para as gerações vindouras. As almas que ali se deixam nutrir pelo dom da fé cultivam a esperança e estão aptas para fazer frutificar a caridade para com todos segundo com os parâmetros que mais agradam a Deus.

2021.02.10 – Louro de Carvalho