Evocação da memória do conhecido como o Padre Vieira da Lapa

Foto publicada por Ana Nunes no Facebook da página Serra da Lapa

[Texto de Louro de Carvalho que aqui reproduzimos a partir do seu blog ideiaspoligraficas.blogspot.com]

Nascido em 1921 na freguesia de Nespereira, do concelho de Cinfães, o Padre Manuel Vieira dos Santos, conhecido como o “Padre Vieira da Lapa”, faleceu na Lapa, na casa onde residia, supostamente a 30 de janeiro de 1994 (já lá vão 27 anos), pois, encontrado o seu corpo, no dia 31, no sítio onde falecera, o facto de estar vestido com a roupa com que foi visto na véspera levou a concluir que falecera no dia 30. Seja como for, as exéquias celebradas no Santuário de Nossa Senhora da Lapa e a romagem do féretro para o cemitério compaginaram um momento de fé, saudade e ação de graças por uma vida inteiramente dedicada a Nossa Senhora da Lapa e seu santuário, bem como à paróquia de Quintela (muito tempo em acumulação com outras), de cujo encargo pastoral tinha sido dispensado poucos dias antes.

Foi um grande arauto da obra e devoção do Padre António Leite (História da Aparição e Milagres. Coimbra: 1639) e do Padre António Cordeiro (Loreto Lusitano, Virgem Senhora da Lapa, Lisboa Oriental: 1719) e, no início do seu múnus pastoral na Lapa, lançou o santuário na rampa da modernidade. Só não conseguiu mais, graças às oscilações e hesitações da autoridade diocesana de que o “capelão” dependia e, mais tarde, fazia questão de depender, apesar de o arcipreste de Sernancelhe o aconselhar, por várias vezes, a que assumisse a Lapa, ao menos, como qualquer pároco, até porque o era da paróquia onde está sediada a igreja de Nossa Senhora da Lapa.

Foi “capelão” (nos últimos tempos já era designado como “reitor”) deste Santuário da Lapa durante quatro décadas – funções que acumulava com as de pároco de Quintela e tendo chegado a ser também e ao mesmo tempo pároco de Segões, de Lamosa e até de Águas Boas (esta da diocese de Viseu) – e muito devoto da Virgem Maria. Para divulgar o nome e santuário da Senhora escreveu o livrinho “Senhora da Lapa – História Pequenina”, que apresentava como “um resumo da História do Santuário e a devoção à Senhora, um pequeno roteiro e a descrição dos altares. E continuou, com determinação e sentido de oportunidade, a obra do seu antecessor, o Padre Ferreira, o grande empreendedor na preservação do património natural e na recuperação do património edificado da Lapa e no rasgamento de vias de acesso ao santuário.

Foi ainda no tempo do Padre Vieira que se fizeram as primeiras celebrações campais no espaço onde hoje decorrem, tendo sido ele a talhar e cinzelar a pedra que serviu ali de primeiro altar. Foi com ele que, graças à generosidade de Vasco Lemos, o município de Sernancelhe instalou a capela doada ao santuário por este senhor e que enquadra o atual recinto das celebrações. Foi no seu tempo que o município de Sernancelhe rasgou e pavimentou a variante ao aglomerado urbano da Lapa e construiu o recinto da feira e o grande parque de estacionamento. E bem creio que, enquanto pôde, nunca o local da nascente do fontenário se emaranhou com o mato, dando azo à futura questão da propriedade do terreno entre a Igreja e a Freguesia.    

Sobre a figura um tanto controversa do Padre Vieira dos Santos respigo algo do que refleti por ocasião da homenagem póstuma que o Município de Sernancelhe lhe prestou a 13 de maio de 2001, com a ereção de monumento no predito parque de estacionamento e sessão pública da sua inauguração e da evocação deste zeloso sacerdote. É uma palavra que lhe devo pela fraternidade sacerdotal que sempre cultivou e pela amizade com que sempre me distinguiu.

Confundido com a misteriosa graniticidade da Lapa e sua envolvente, surgia bondoso e original no seu perfil o Padre Manuel Vieira dos Santos a quem as crianças e adolescentes pediam a bênção. Aparecia geralmente desprovido do traje eclesiástico, alegadamente para não dar imagem distorcida do sacerdote a quem se pudesse escandalizar pela sua apetência volumétrica. Mas a quem perguntava pelo “capelão”, “padre” ou “reitor” não se furtava à identificação como sacerdote e à conversa franca e usualmente amável. Robusto como a lapina fraga pomposa e acolhedora, sábio e folclórico como o minudente presépio da Escola de Machado de Castro, assim autossacrificado como o peregrino que se polvilha com a poeria do caminho, piedoso como o romeiro que penetra nas plissas da gruta bendita e a perpassa de olhos marejados e terço ou vela na mão, tão lúcido e solidário como o companheiro que ensina a descobrir, guia, acompanha e ajuda outros companheiros, peregrinos e romeiros – eis os predicados que lampejavam na silhueta sofrida e bonómica do inefável sacerdote e emolduravam a sua venerável figura de pastor zeloso que nunca dissociava a procura do bem-estar espiritual dos fiéis dum mínimo de conforto físico e de boa convivência.       

Revestido duma timidez muito própria e duma peculiar frontalidade, em permanente e estranha contradição, primava pela operosidade de quem, na dinâmica pacatez nervosa, porfia na representação da pura linha orientadora dos superiores eclesiásticos, a quem fazia questão de obedecer, sem contudo abdicar do modo pessoal de entender a vida (no mundo e na Igreja) como ela é ou de a perspetivar com as virtualidades que lhe são inerentes. Topava-se o “capelão” da Lapa assim animado do zelo das almas, do cuidado pelas coisas e pela solicitude pela projeção devocional que incutia no acervo das preocupações aderentes ao latejar das pessoas e dos povos.

Em seu estilo muito singular, acompanhou, com euforia bastante, os picos de glória e, com resignada indignação, os poços do olvido que atravessaram faixa considerável da história deste santuário serrano – qual testemunha inconformada das hesitantes dúvidas e grandes oscilações da Mitra lamecense a quem o Santuário da Lapa fora outorgado por esmola pela Rainha Dona Maria I, por via do banimento pombalino da Companhia de Jesus e sua posterior dissolução papal, uma instituição que foi a modelar propulsora do culto lapino pelo mundo fora e a denodada obreira da liberdade de etnias e povos, como dizia Fernando Carvalho Rodrigues, por demasiado acorrentados pela esclavagizante domesticação que a cultura ocidental lhes ousava infligir algures e alhures em nome da conveniente abertura ao desígnio salvífico de Deus concretizado no Redentor do Homem ou sob a capa da suposta implantação do fermento civilizacional em terras consideradas primitivas ou rudes.  

Vieira dos Santos era: o seguidor incondicional da súpera e inconcussa orientação de uma economia eclesial, promotora segura da salvação dos homens e humanizante morigeradora de usos e costumes, que se movia entre o indómito e o generoso; o padre que de modo exímio almejava a devoção sincera e empenhada em que se deviam moldar o culto público e o privado, bem longe da superficialidade rotineira ou da hipocrisia serpentina mais assente nas mundanais convenções; o trabalhador persistente na subsistência das estruturas fautoras do culto e na valorização da dignidade da vida pessoal e coletiva; o companheiro de trato nem sempre fácil, mas deveras hospitaleiro e amigo, com quem se gostava de cavaquear; e o cidadão ocupado em seus naturais entretenimentos sadios, mas expectante em relação aos benefícios emergentes de um desenvolvimento sustentável que os poderes teimaram em fazer desembarcar mui tardiamente neste altiplano, um cadabulho da civilização drenado pelos minúsculos capilares dos aqui incipientes vales do Vouga e do Paiva e pelo já bem cavado vale do Távora, ou escoltado dos ventos uivantes pelas orlas das cercanias circunvizinhas.

Com lances de saudade por pinhos por si mandados abater e com laivos de inocente esperança de homem bom e confiante, vislumbrou os alicerces sólidos do redimensionamento das potencialidades peregrinacionais do Santuário, da apetência turística da Serra e do Vale, do reordenamento do culto, da cultura e da convivência e da reinscrição da Lapa nos vincados mapas do conhecimento e das influências.

O Padre Vieira dos Santos, pela sua paciência, zelo e bondade, pela devoção, aplicação ao culto e trabalho polifacetado, pelo respeito, companheirismo e sentido de amizade universal, bem merece um avantajado relevo na memória coletiva dos povos, mormente na das comunidades que tiveram o condão de privar com a pessoa do Homem da Lapa e de cuja obra lograram usufruir os frutos mais fecundos que são os do espírito.

Coube ao município de Sernancelhe o encargo e a honra de poder incluir o nome deste profícuo eclesiástico nos anais da sua invejável história. E incumbe-nos a todos manter viva a chama da sua memória e dar graças a Deus pelos benefícios espirituais que o padre distribuiu pelo povo de Deus, pelas personalidades que ajudou a modelar e a construir. Um bem-haja e que viva na paz de Deus!

2021.02.01 – Louro de Carvalho