Há 52 anos, Portugal sentiu o maior sismo desde 1755

 


[Texto de Louro de Carvalho - ideiaspoligraficas.blogspot.com]

Na madrugada de 28 de fevereiro de 1969, Portugal Continental foi abalado pelo maior terramoto sentido na Europa depois de 1755 (Lisboa), com a morte de 13 pessoas (duas em consequência direta do abalo e 11 por consequência indireta, algumas acometidas de síncope), vários feridos e queda de casas.

A população ficou assustada e muitas pessoas passaram a noite fora de casa apesar da chuva gelada. Foram 4 minutos de ansiedade – entre as 03:41 e as 03:45 – em que grande parte do país, em pânico, saiu para a rua meio despida ou em pijama. “Uma eternidade em breves segundos: Levará muito tempo a esquecer o pavor da última madrugada de fevereiro” – era um título de 1.ª página no DN do dia seguinte. E daquela madrugada dramática escrevia o JN:

“Com a terra tremiam os homens e as mulheres que a povoam. Porque ontem só duas espécies de pessoas não tremeram, de novo os inconscientes e os mentirosos.”.

O epicentro esteve no Oceano Atlântico, 180 Km a sudoeste do Cabo de São Vicente (Vila do Bispo), onde navegava o “Manuel Vicente”, navio misto de cargas e passageiros que fazia a ligação entre Portugal e Angola, vindo depois o comandante da embarcação a descrever o local “como o borbulhar de uma panela de água a ferver”.

O Sul, mormente o Algarve, e a região de Lisboa foram as zonas mais atingidas pelo sismo de 7,9 na escala de Richter (embora com dados variáveis, como se verá a seguir), que se fez sentir também em Espanha e Marrocos. Foi o último grande sismo sentido por cá e o mais importante do século XX. O comunicado do SMN (Serviço Meteorológico Nacional), que antecedeu o IPM (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), emitido a 28 de fevereiro de 1969, referia:

“Foi registado um sismo nas estações sismográficas de Coimbra e Lisboa, com início às 3h41m 41,5s [e] 3h41m 20,2s, respetivamente, e com o epicentro a cerca de 230 km a SW de Lisboa. A magnitude do sismo atribuída é de 7,3 na escala de Richter, tendo sido sentido com intensidade VI-VII da escala Mercalli modificada (MM56) em Lisboa e noutras localidades do continente.”.

O epicentro foi posteriormente determinado como 36.01º N, 10.57º W e foram-lhe atribuídas as magnitudes Ms=7.9 e Mw=8.0 pelos dados da RSI (rede sísmica internacional). Em Lisboa houve forte réplica com início às 5h 28m com intensidade III da escala MM56.

O sismo provocou alarme e pânico na população, corte nas telecomunicações e no fornecimento de energia elétrica; foi sentido até 1 300 km de distância do epicentro, vg em Bordéus e nas Canárias; e teve várias réplicas, tendo a estação sísmica da WWSSN (World Wide Standard Seismographic Network) da Serra do Pilar (Porto) registado 47 réplicas (de 28 de fevereiro a 24 de março).

Também em Marrocos foram reportadas algumas vítimas. Porém, a maior intensidade (VIII) foi observada no Algarve, sendo atribuída a Lisboa uma intensidade VI. 

A nível dos efeitos, sabe-se que foram consideráveis, no Algarve, os estragos nas construções, sobretudo em Vila do Bispo, Bensafrim, Barão de São João, Portimão e Castro Marim, com fendilhação de paredes, chaminés e tetos, deslocamento de telhas, quebra de vidros, etc. Em Bensafrim caíram mais de 20 casas. Em Vila do Bispo e em todas as povoações do concelho, os prejuízos foram avultados, com muitas casas derrubadas e outras muito danificadas. Em Lagos, ficaram danificados muitos edifícios e as rachas obrigaram ao escoramento de alguns. O edifício da Câmara Municipal ficou danificado, com o piso superior fendido e em risco de derrocada. Terão 400 casas sido derrubadas ou arruinadas. Pessoas amedrontadas da zona de Santo Amaro puseram-se a salvo com os seus meios de transporte. Na cidade lamentou-se a perda de uma vida devido a desabamento duma parede da casa degradada onde vivia. Várias réplicas se seguiram, sobressaltando a população.

Em Lisboa caíram muitas chaminés de edifícios e paredes pouco consolidadas, que destruíram veículos estacionados. Parte da cidade ficou sem energia e comunicações telefónicas. Foram reportados 58 feridos ligeiros. Um acelerómetro instalado na Ponte 25 de Abril obteve um registo sísmico completo da vibração da ponte.

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Como é natural, muitas pessoas acotovelavam-se nas ruas, de rosto marcado pelo medo, em trajes reduzidos, muitas tal como se encontravam deitadas, pois debandaram de casa com receio de desabamento, sem se preocuparem em agarrar um agasalho. Tremia-se de frio, a humidade era muita e caía uma chuva miudinha que penetrava os ossos e resfriava todo o corpo. Porém, muitos nem davam conta, mercê da angústia que os invadira. O pânico voltou às 5:28, quando se sentiu uma réplica de pequena intensidade, pois acreditavam que este abalo seria de grande intensidade. E muitos pernoitaram na rua, nos passeios, em bancos de jardim, embrulhados em cobertores.

Muitos diziam que o céu tomara coloração rubra, a lembrar uma aurora boreal, e fez, depois raiar um rápido, mas intenso, clarão. O dia amanheceu com poucas nuvens no céu, com o sol a brilhar, mas com muita destruição: carros foram soterrados por paredes que caíram; os hospitais de São José (parte teve de ser evacuada) e o Curry Cabral também ficaram danificados.

Não havia ainda telemóveis. Fizeram-se filas de gente de roupão e camisa de dormir junto às cabines telefónicas: todos queriam saber dos seus, mas as comunicações não estavam fáceis, com falta de rede, aparelhos destruídos, linhas impedidas. Os muitos que não conseguiam ligação ligavam para o número das avarias (o 13), na Rua da Trindade, em Lisboa, onde estavam de serviço nessa noite 25 telefonistas, que atendiam entre nervos e lágrimas, possibilitando que outras pessoas expandissem as mesmas lágrimas e nervos, o que é humano.

O Hospital de Castro Marim, no Algarve, ficou praticamente destruído. Em Casseia, várias casas vieram abaixo e a igreja, reconstruída após o terramoto de 1755, sofreu danos consideráveis. Em Boliqueime, uma criança foi salva pelos avós, que a retiraram do berço onde estava a sufocar por causa das pedras e entulho. Em Lagos, próximo do quartel, uma família salvou-se por um triz: mal puseram os pés na rua, a casa onde habitava desabou em ficou em ruínas.

A 2 de março o DN mostrava o país a refazer-se da emoção, com Marcello Caetano a visitar o Hospital de São José, que sofrera vários danos, e onde quase mil pessoas já tinham tido alta.

Nos dias seguintes, foi conhecido o testemunho do comandante do “Manuel Vicente”, o navio que navegava no epicentro do sismo e a que se aludiu acima. O comandante Oliveira Manata estava recolhido. Às 1:43 locais, percebeu que o navio se comportava de modo estranho: arfava. Depois, deixou de arfar e começou a vibrar com muita força. O comandante vestiu o roupão e foi ver o que se passava. Pensou que a embarcação tinha perdido a hélice ou que uma das máquinas tivesse gripado e a outra estivesse a arrastar, mas o chefe de máquinas já tinha feito essa verificação. O barco era intensamente abalado. E, segundo o DN, o comandante contou:

“O barco vinha a navegar com vaga moderada. Na altura do abalo, a vaga desapareceu e via-se o mar, de um lado e de outro, borbulhar como a água de uma panela a ferver. Logo que parou a vibração, vieram duas vagas grandes; o navio subiu uma, desceu a outra e passou-a também. Depois tudo serenou.”.

Os passageiros, pensando que o navio encalhara, não ficaram muito alarmados, mas vieram para os corredores tal como estavam.

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Hoje, compreende-se melhor a fronteira a sul de Portugal, que separa a placa Euroasiática da Africana. É constituída por uma rede de falhas ativas com grande potencial para gerar sismos e tsunamis. Percebe-se melhor a propagação das ondas sísmicas, a atenuação da energia a partir das falhas, a forma como os solos amplificam ou atenuam a energia das ondas sísmicas e como os edifícios se comportam sob o efeito dessas ondas. Mas ainda há muito para aprender. Por isso, a propósito do cinquentenário do sismo, foi lançado, em 2019, um concurso a nível escolar (para escolas básicas ou secundárias) instando à participação através da resposta a questionário online, com vista a um trabalho de investigação que ajudasse a caraterizar a perigosidade sísmica de Portugal e a prepararmo-nos para sismos futuros.

Os alunos deviam encontrar um adulto (avô, tio-avô, vizinho, etc.) que tivesse sentido o sismo e se lembrasse tão bem quanto possível do sismo. Em conjunto com o adulto que sentiu o sismo, o aluno preencheria o questionário e identificaria a escola que frequentava. Devia ser preenchido um inquérito por cada relato disponível, podendo o aluno, por isso, preencher mais que um inquérito, um por cada relato/testemunha. O desafio proporcionou recolha de informação científica importante, deu prémios a quem submeteu mais de 100 respostas e estimulou o diálogo intergeracional. Com efeito, ao interagir com um adulto que tenha vivido o sismo, o aluno escutava relato de vivência dum sismo forte na 1.ª pessoa, o que o estimularia a aprender mais sobre sismologia e a preparar-se para caso de sismo, e ficava a saber como os inquéritos sísmicos contribuem para a determinação dos mapas de intensidade.  

Por outro lado, após o sismo de 1969, a rede sísmica nacional melhorou significativamente.

A sismologia instrumental iniciou-se por cá no início do século XX e sofreu, durante 7 décadas, considerável evolução impulsionada pela ocorrência de sismos: a 23 de abril de 1909, no sismo de Benavente, a rede sísmica tinha só um “pêndulo horizontal de Milne” no Observatório da Universidade de Coimbra; em 1910, o Instituto Geofísico da Universidade de Lisboa (atual IDL) instalou três sismoscópios Agamemnon nas Penhas Douradas, Évora e Lagos e um sismómetro vertical Mainka em Lisboa. Em 1913 e 1914, foram adquiridos 3 sismógrafos Wiechert de três componentes, mas instalados apenas em 1919. Coimbra recebeu equipamentos similares entre 1915 e 1926. Os primeiros resultados de análise de sismos foram publicados pelo atual IDL em 1920, tendo a gestão da rede passado para o SMN (atual IPMA) a partir de 1946, que instalou novos equipamentos sismológicos nos três institutos geofísicos: em Coimbra, um sismógrafo eletrónico de curto período; e, no Porto, um sismógrafo Sprengnether idêntico ao instalado em Lisboa. Em 1963, houve novo progresso com a instalação duma estação WWSSN no Porto.

Em 1975, o SMN instalou uma estação sísmica de curto período em Faro e outra em Manteigas. Com a formação do INMG (Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica) foram instaladas 5 estações sismográficas (Montachique, Moncorvo, Portalegre, Montemor-o-Novo e Monte Figo-Faro), algumas das quais já com capacidade telemétrica analógica. Apesar da melhoria na sua composição, a rede sismográfica do Continente, que funcionou até meados da década de 1990, não mostrou grande eficácia em termos de deteção. Por isso, para ultrapassar o problema na zona Sul, onde há maior sismicidade, em dezembro de 1995 foi instalada no Algarve, no âmbito dum projeto internacional financiado pela UE, uma rede regional que se tornou operacional em janeiro de 1996 e permitiu melhorar a capacidade de deteção e estudo dos eventos sísmicos, em particular no Algarve e na região Atlântica adjacente, tendo estado em operação até dezembro de 2000.

Em termos de rede digital, em 1994, o então Instituto de Meteorologia iniciou um projeto de aquisição e instalação duma rede digital a instalar no Continente e no arquipélago da Madeira (depois, visou instalação similar no arquipélago dos Açores) que ficaria concluído em 1998.

O desenvolvimento seguinte ocorreu no período 2006-2009, com o processo de modernização da rede sísmica nacional, e compreendeu a instalação de 22 estações sísmicas de banda larga, com registo acelerométrico incluído. Este dispositivo tornou possível o registo de todo o tipo de eventos sísmicos, desde o nível do microssismo ao dos movimentos fortes associados aos sismos próximos de maior magnitude e aos dos de magnitude superior a 5 que ocorram em qualquer parte do globo. Estes equipamentos permitem a transferência da informação sísmica em tempo quase real (4-10 segundos de latência) para o centro operacional, onde o sistema de processamento que permite o acompanhamento da atividade sísmica em tempo quase real e a disseminação de informação em tempo útil para atuação dos serviços de proteção civil (ex: avisos rápidos com informação básica da fonte sísmica; estimativas de impacto macrossísmico). Além da componente operacional, a rede contribui para a obtenção de dados de elevada qualidade, essenciais para estudos vários, incluindo a caraterização da perigosidade sísmica.

A melhoria tem agora nova fase, com apoio do POSEUR (Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos) (PORTUGAL 2020), para o melhoramento da rede sísmica do Centro e Sul de Portugal Continental, com modernização de estações sísmicas de banda larga e instalação de novas estações acelerométricas, sendo este desenvolvimento orientado para o alerta precoce de sismos e tsunamis. Paralelamente, outras entidades, que não o ex-IM (atual IPMA), instalaram equipamentos sísmicos para vários fins. O IST (Instituto Superior Técnico) instalou, em várias etapas, a rede acelerométrica de âmbito nacional e a rede digital telemétrica de banda larga no Vale Inferior do Tejo. As Universidades de Lisboa, Évora e Coimbra instalaram e operam estações de banda larga e, com a coordenação entre várias entidades, foi possível integrar no IPMA a informação, em tempo quase real, das várias estações sísmicas a operar em Portugal.

Na componente dos tsunamis, o IPMA assegura, em cooperação com os países do Atlântico Nordeste e Mediterrâneo e sob a coordenação da COI (Comissão Oceanográfica Intergovernamental), a operação do sistema de alerta de tsunamis, tendo inaugurado, em novembro de 2017, o Centro Nacional de Alerta de Tsunamis, simultaneamente Centro Regional de Alerta para os países do Nordeste Atlântico. O Centro de Alerta está orientado para a deteção e monitorização de tsunamis de origem sísmica e tem por base uma sequência de operações que vão desde a obtenção e análise de dados após ocorrência dum terramoto até à emissão de mensagens. O sistema rem três componentes principais: deteção sísmica (assegurada pela rede sísmica de banda larga), deteção e análise do tsunami (assegurada com recurso à rede maregráfica, em Portugal operada pelo Instituto Hidrográfico, Direção Geral do território e pelo IPMA) e envio de mensagens.

As mensagens de alerta são enviadas para os pontos focais designados por cada Estado-membro da COI, sendo particularmente orientadas para o sistema de proteção civil de cada país.

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Este apontamento, respigado de duas longas reportagens plasmadas no DN em fevereiro de 2019, avivou-me a memória do sismo. Estava no Seminário de Lamego, a frequentar o então dito 2.º ano de Filosofia. Acordei de noite com o barulho. Como outros, mantive-me no quarto, embora a pé. No dia seguinte, soube que, enquanto um dos colegas se pôs a comer da merenda que tinha no quarto, alguns saíram para o campo de futebol, por ser terreno aberto.

E notou-se fendilhação sobretudo na plataforma granítica que sustém o robusto edifício do Seminário. Estragos houve na zona, mas sem danos pessoais. A lição da efemeridade da vida!

2021.02.28 – Louro de Carvalho