Poema, “Inauguração da biblioteca”, que em junho de 2006 li
na inauguração da Biblioteca Luís Veiga Leitão – Escola Sec/3.º Ciclo Dr.
Joaquim Dias Rebelo, Moimenta da Beira:
Inauguração da Biblioteca
A hora aprazada para a
inauguração da biblioteca aproximava-se.
Porém, a agitação
continuava nas prateleiras.
Os dicionários andavam
num rodopio. Tinham tido uma noite movimentadíssima e a manhã ia pelo mesmo
caminho.
Não lhes estava a ser
fácil recolher todas as palavras. É que havia sempre aquelas que não perdoavam
prolongar uma noite de diversão, uma noite bem passada, com música bem batida.
Bem curtida!
Fazer-lhes compreender
que tinham todas de estar bem acordadas às dez em ponto para a inauguração…
Não estava a ser
empreitada fácil. Não foi tarefa fácil!
É que as palavras, às
dez em ponto, não podiam mostrar cansaço, bocejar, quando fossem chamadas a
significar.
Vejam bem que até a
palavra “liberdade” se atrasou! Foi a última a chegar!
É que ela achava que
não devia ter regras…
Não queria saber das
suas obrigações… Dos seus deveres…
Mas lá entrou ainda
dentro do horário e tomou o seu lugar numa das 1556 páginas do dicionário.
Os restantes livros
também já estavam todos a rumar aos seus escaparates.
Embora não gostassem
muito daquela disciplina de cada um ter o seu código e o seu lugar, tinham
concordado em participar…
Foi um trabalho
difícil sob a responsabilidade da enciclopédia.
Mas valeu a pena.
Estavam todos a
postos, com os seus fatos domingueiros.
Estavam à espera da
cerimónia.
Mas eis que,
entretanto, surgiram problemas em várias estantes.
Na das ciências
exactas gerou-se uma discussão monumental.
A Física, a Geologia e
a Botânica insurgiram-se com o facto de a Matemática estar a albergar o PI.
Queriam expulsá-lo da
prateleira.
Afinal onde estava a
sua exactidão?
3,141.592.653.589.793.238….
O PI tinha de sair.
Tinha um valor impuro. Transcendental. Sem fim…
Que fosse arranjar
guarida lá prós lados da Filosofia…
Mas na prateleira das
Ciências Sociais e Políticas também havia um enorme burburinho.
Não chegavam a acordo.
Eram vários os que não queriam ali a democracia.
Eram só problemas, só
problemas nos regimes democráticos…
Sindicatos…
Funcionários Públicos… Agricultores… Professores… Médicos…
Era uma gritaria
pegada.
Até que Aristóteles,
com voz autoritária e milenar, e farto daquele guerrear disse, parafraseando
Churchill:
“A democracia é um mau
regime, mesmo muito mau… Exceto todos os outros”.
Os livros engoliram em
seco, entreolharam-se cabisbaixos e nenhum mais levantou a voz.
As coisas estavam
finalmente a ganhar forma.
Podia começar a
sessão.
Mas eis que
entretanto, a cinco minutos do início, um sururu enorme começou no sector dos
jornais…
Então não é que o
Record estava indignado?
Com os jornalistas,
comentadores, relatores….
Essa de chamarem Bola
ao esférico não lembrava ao diabo! Não podia ser Bola!
Que fosse redondinha,
esfera, berlinde, rapaqueca…
Tudo servia menos
Bola. Não tinham nada que andar a fazer publicidade ao inimigo!
E chamar Jogo a um
desafio?
Também não podia ser –
vociferava o Record.
Jogo nunca. Que fosse
encontro, embate, confronto, ou até match…
Tudo, tudo menos
Jogo….
Face a tamanho sururu
e a diversas agressões físicas, a enciclopédia teve de mandar avançar os livros
policiais para repor a ordem.
O que fizeram,
diga-se, em dois tempos.
É bem verdade que
ainda tiveram de usar gás lacrimogéneo para afastar os interlocutores daquela
contenda… que, ainda aos gritos e com mazelas bem visíveis, (olhos à
belenenses, capas com arranhões e primeiras páginas rasgadas) lá regressaram
aos seus lugares!
Tiveram, até, que
ficar dois livros policiais, dois dos mais musculados, por perto, para os ter
sob vigilância.
Dez horas em ponto.
As estantes estavam
todas a postos. Os livros estavam todos de pé à espera do início da cerimónia.
Eis então que da
estante da música saem os primeiros acordes.
Foi a concertina a que
começou. Saltou para cima das mesas, estridente, desabrida, acordes maiores,
fortes, saltitantes…
O violino não demorou.
Seguiu-lhe o rasto e no primeiro salto da prateleira encaixou-se na sinfonia e
mergulhou nas valsas de Viena…
E o realejo? Esse das
feiras e romarias das músicas ao desafio… Também quis fazer das suas. Quis
mostrar-se, dar-se, enlear-se…
A música era agora
total.
Todos os livros
dançavam no seu espaço, no seu compasso… Até os dois livros policiais, os
musculados, já tinham sido requisitados, para dançar, por duas jovens do 12º
ano.
Era a sinfonia do
dia-a-dia, do ruído, do silêncio. Era o fruir e fluir. Era o sussurro. Era o trabalho
para todos e com todos.
Eram os livros a
cumprir-se, a dar-se, a soltar-se, a oferecer-se…
Era o folhear… A
cumplicidade…
Era o eco, o agora e o
sempre…
Era a biblioteca, era
a escola
É este espaço, de poesia,
de sonho, onde me invento
E onde a vida acontece
em cada momento…»
* Acácio Pinto –
16.06.2006