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Texto de Carlos Paixão no lançamento de O Emigrante em Sátão

 


Agradecemos penhorademente ao professor e escritor Carlos Paixão a sua disponibilidade para apresentar O Emigrante no dia 9 de novembro na Biblioteca Municipal de Sátão.

Eis o texto que partilhou com os presentes:

Começo, naturalmente, por agradecer a distinção que me foi conferida pelo autor, para fazer neste agradável espaço da Biblioteca Municipal de Sátão, mais agradável ainda para quem gosta de ler e escrever, a primeira apresentação pública de O Emigrante. Depois de, por duas vezes, na qualidade de membro do júri do Prémio Literário Cónego Albano Martins de Sousa, ter tido o privilégio de ler e fazer a apreciação das suas duas obras premiadas pela Câmara Municipal de Sátão, O Volframista e o Leitor de Dicionários, fui, agora, confrontado com este enorme desafio de vos dar a conhecer esta obra acabada de publicar.

Começo, naturalmente, por dar os parabéns ao autor, por continuar, e vou-me repetir, pois é merecedor que eu me repita, por continuar a abrir mais um baú de memórias, pelas horas que continua a despender na consulta de documentos, pelo tempo dedicado a ouvir testemunhos de um passado aqui trazido ao presente. E isto é extremamente relevante, pois, abrindo as suas arcas de memórias, abrirá muitas outras arcas, por ele desconhecidas, dos inúmeros leitores que lerão e refletirão sobre a sua obra. Poderão ser memórias joviais de bondosos momentos, poderão ser memórias pesarosas ou funestas, mas todas elas constroem histórias de vida, histórias de vidas, vividas ou sonhadas, reais ou ficcionadas, mas serão sempre vidas. E são vidas, aquilo que o Dr. Acácio Pinto nos oferece nas suas obras. Vidas que expõe a nossos olhos, vidas esquecidas pelos tempos e pelos homens, mas vidas que ele ressuscita, usando a pena e a palavra.

Esta é uma obra que, à semelhança das anteriores, nos coloca perante uma rodilha, num emaranhado de tempos e de acontecimentos, que nos obriga a ser leitores atentos se não quisermos, desde cedo, perder o fio à meada. E, para não me perder eu nesta encruzilhada de linhas e ramais, começo pelo início, pelo nome desta locomotiva: “O Emigrante”. Todos percebemos que um emigrante é aquele que sai do seu país, distinto de um imigrante que é quem entra noutro país para aí viver. Como tal, o uso de cada um dos vocábulos, com “e” de saída ou com “i” de entrada, só depende do ponto de vista do país de referência e de um passo que nos coloca de um ou do outro lado da fronteira. Não sei se o autor, ele poderá aclarar, escolheu este tema pela atualidade que ele tem tido no debate político, sobretudo em relação àqueles que têm chegado ao nosso país e sobre a tão propalada lei da nacionalidade. Sendo ou não sendo, a verdade é que esta obra também nos transporta e nos faz refletir sobre essa realidade social que, afinal, faz parte da nossa história e que até vemos, entendo eu, refletida nos nossos símbolos nacionais. Não nos ensinaram que a esfera armilar representa, na nossa bandeira, o símbolo das descobertas marítimas e da expansão do país? Não representa ela, também, a audácia e o espírito aventureiro dos portugueses? Foi essa audácia que nos levou aos quatro cantos do mundo, mas não o foi apenas nos séculos XV e XVI. Esse espírito aventureiro está no sangue dos portugueses e prolongou-se no tempo e nos espaços. Hoje, temos portugueses espalhados por todos os cantos e recantos do planeta. Mas se está no sangue dos portugueses também o está no sangue de muitos outros povos, alguns, muitos, onde os portugueses foram misturando os sangues e os genes. E cada um de vós, cada um dos leitores, irá dar conta de quanto é importante o sangue no desenrolar desta narrativa. Este romance fala-nos de gentes que, com o mesmo espírito aventureiro, partem para longe, buscando a sorte noutras paragens. Mas, enquanto uns partem, outros chegam. Por isso, atrevo-me mesmo a dizer, sem querer levantar discussões estéreis, que, hoje, a esfera armilar da nossa bandeira representa também o abraço que damos àqueles imigrantes que, vindos de tantas partes deste mundo, demandam ao nosso país para aqui almejarem melhores condições de vida e que, sem dúvida, contribuem para criar mais riqueza e desenvolvimento para todos.

Foi essa riqueza, essa melhoria de condições de vida, que este nosso Emigrante e que outros, tanto como ele, se propuseram a encontrar em França, destino de tantos e tantos portugueses, numa estimativa de cerca de um milhão, que, nas décadas de 60 e 70, do século XX, foi marcante para o nosso país, tendo-se depois alargado a muitas outras geografias e que ainda hoje fazem parte da realidade de muitos dos nossos jovens, de muitas das nossas famílias. Quantos de nós não tivemos progenitores ou familiares próximos que buscaram a sorte noutras aragens, entre outros povos?

Continuando pela capa, depois da locomotiva, eis que se detêm na estação as muitas carruagens que lhe vêm atreladas. Na capa azul acinzentada, antes de partirmos, afiguram-se-me, desde logo, duas realidades bem distintas. O cinzento a impelir-nos para a dureza dos dias que se anunciam, na “bidonville”, ou na siderurgia, nas dificuldades sentidas com a língua e com o clima, ou então interiorizamos mais o azul e a bordadura dourada de um futuro que se quer de ouro sobre azul, onde sobressai um bom ordenado, as remessas enviadas para a família, os estudos e o curso que pode dar à filha e o acautelar do futuro do filho portador de deficiência. Cada um atentará na capa a seu jeito, e se dará conta que cada uma dessas tonalidades sobressairá em distintos momentos da narrativa. Se as cores nos apontam para essa dicotomia, a personagem aí estilizada, não nos deixa dúvidas sobre o peso que carrega sobre as costas. Ali, vai o peso das saudades, que ainda agora começaram, vai o peso da família, que fica para trás, vai o peso da incerteza. No entanto, no coração, adivinhamos a vontade de vencer e o sonho de um futuro a sorrir.

Entremos, então, portas adentro desta narrativa, arrumemos a trouxa o melhor que pudermos, e acomodemo-nos onde nos for possível, pois as carruagens, onde viajamos, vão apinhadas de vidas com muito, muito para contar.

Estando acomodados, convém lembrar que a palavra “comboio”, entrou no português no século XVII, quando ainda nem sequer havia comboios. Vem, coincidência conveniente, neste caso, do francês “convoi”, verbo convoyer, que deriva do latim vulgar “conviare”, do verbo “viare”, viajar, a partir do substantivo “via”, que significa caminho. Mas esse significado é mais profundo quando percebemos que tem a ver com ir em conjunto no caminho. Daí, mais tarde, designar o conjunto de carruagens atreladas a uma locomotiva. Mas este ir em conjunto no caminho tem toda a propriedade quando nos referimos a esta obra, pois, desde o seu início, “Ei-los que partem”, sentimos que as personagens nunca estão sozinhas, mesmo não estando presencialmente, há laços inquebráveis que as prendem. Muito próximas, em muitos momentos, de costas voltadas, em alguns, percorrendo um enovelado de linhas, com estações e apeadeiros. O maquinista desta composição conduz-nos a alta velocidade, levando-nos de ação em ação, surpreendendo-nos ou deixando-nos pistas, algumas falsas, convém dizê-lo, para que nós tentemos antecipar o que mais adiante se poderá desenlaçar, mas também sabe quando é oportuno parar para, nesses momentos de pausa, nos dar conta de retratos de personagens e ambiências que acrescentam ao nosso imaginário. Este livro não dá apenas enfase às fronteiras físicas que se transpõem a salto, sublinha também os saltos e trambolhões de personagens que transpõem linhas de moralidade e decência, a coberto de um poder económico e ou influência social e que subjugam quem os serve. Esta narrativa revela, como acontece nos anteriores romances do autor, vários aspetos que começam a caracterizar e identificar a sua escrita. O autor põe em cima da mesa várias deixas que nos aguçam o apetite para continuarmos a leitura. Enquanto algumas frases, propositadamente, “trazem água no bico”, ou nos deixam “a pulga atrás da orelha”, outras apontam-nos coincidências que nos querem antecipar enredos que nem sempre se concretizam. E, enquanto este comboio da narrativa se desloca por lugares mais ou menos identificáveis, alguns bem conhecidos, Ponte do Abade, Aguiar da Beira, Viseu, Figueira da Foz, Mira, ou nem tanto, como o Barrocal, Bunhos e o Penedo da Moira, o autor vai ponteando a paisagem desta obra com aspetos de cariz político, como a trafulhice das eleições presidenciais, os bufos da Pide, a guerra colonial ou o eterno presidente da Junta, muito próximo dos influentes, em oposição às más leituras da Rita, trazidas da casa do tio Germano que, nos dizeres das más línguas, andava metido com os comunistas. Não falta a ligação umbilical às raízes, bem explicita na Festa de Nosso Senhor de Todos os Caminhos ou nos andoreiros da Santa Bárbara e nas tradições das nossas terras. Mas são sentimentos e valores como a ambição, a vergonha, o escândalo, a amizade, o segredo, os silêncios que na hora certa ou imprópria se quebram, “onde há filhos não recebem sobrinhos”, carregam vagões de incertezas e definições que nos levam a pensar, a cada passo, de que a trama ainda não findou, ainda não chegou a hora do “felizes para sempre”. Também não o desejamos, pois a cada passo deliciamo-nos com as tiradas pitorescas que enfeitam a ação e de que são exemplo: “Só se foi ele que andou a galar as galinhas do vizinho” ou “mexeu os cordelinhos”, “encheu a pança” ou ainda “A minha mulher dá o cu e cinco tostões por uma festinha”.

No entanto, logo que o autor muda a agulha para a Parte II deste livro, as ações passam a suceder-se a um ritmo alucinante, a velocidade da composição é mesmo vertiginosa e aí, os nomes do Joaquim Pedreiro, da Olinda, do Miguel Contreiras, do Augusto, da Adelaide, do João e da Arlete Vendeiro, da Teresa e da Zulmira, do Zé Carpinteiro, do Álvaro Ferreiro, da Dulcineia, da Rita e do Raúl ganham uma dimensão que vai muito para além da centralidade do Renato, em que nos focáramos na parte I, em que são poucos, como o Augusto, a, com ele, fazerem caminho juntos. Entram na composição em diferentes estações, mas as suas linhas de vida cruzam-se, não num Entroncamento dos fenómenos, mas numa encruzilhada de acontecimentos que só o maquinista, autor atento, saberá desnovelar. Aqui, a morte, o casamento, as heranças, algumas são apenas do “mau feitio”, mas outras são avultadas, os interesses, as relações pecaminosas, a doença, a par da conveniência dos “amigos para as ocasiões”, o sensacionalismo e até o alarme social vão contrastar com inesperada generosidade e altruísmo da personagem que, bem perto do final desta viagem se vê a entrar num túnel muito escuro, mas de onde poderá sair ou não, conforme o que o destino lhe tenha reservado, acaso se cumpram os dizeres de Renato, “É o destino, Augusto! Cada um de nós tem o destino traçado.”

Sei que não vos contei a história ou as histórias que este romance encerra, pois não era esse o meu objetivo. Apenas pretendi despertar o vosso interesse para a sua leitura, registando em jeito de conclusão de que esta obra, que tive muito gosto em ler e analisar, é uma obra onde há uma partida com dúvidas, mas assente em certezas, e há um regresso com muitas certezas que se desfazem em dúvidas.

Ao autor, caro Acácio, caro amigo, com quem fiz muito caminho junto, qual exímio maquinista, que tão bem soubeste pôr este comboio em andamento, não te demores muito tempo nesta estação. Procura outras linhas, outros ramais, enche as carruagens, tenham os passageiros bilhete ou não, leva-nos a novas paragens, atravessando túneis escuros ou paisagens luminosas e conduz-nos a um novo destino, um novo livro, uma nova obra que nos enriqueça como esta o fez! Obrigado, Dr. Acácio Pinto!

Carlos Paixão, nov.2025 

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