Todos os anos no final do mês de julho a aldeia de Águas
Boas leva a cabo a festa em honra de Nossa Senhora da Penha do Vouga, uma
festividade de elevada carga simbólica para as suas gentes, cuja estátua, com
cerca de um metro de altura, está colocada ao lado do altar da Igreja Matriz local. “Donairosa,
levemente inclinada para a frente, com o jeito carinhoso de mãe, tem nos braços
o Menino, que com uma das mãos segura uma romã e com a outra poisa os dedos em
cima dos dedos da Senhora, num ar de afago e carícia emocionantes”, como refere
o padre Albano, no seu livro Terras do
Concelho de Sátão.
Ora, fazendo fé na memória dos mais idosos, que por sua vez ouviram
aos seus avós, a imagem da Senhora da Penha do Vouga, bem como o altar
principal e outros elementos de arte, integrantes, atualmente, da Igreja Matriz
de Águas Boas, dali não eram originalmente. Toda esta estatuária e arte sacra
terão vindo de “Penavouga” que “foi um dos mais famosos ermitérios da
Beira”, para utilizar as palavras de Aquilino Ribeiro no seu livro
Geografia Sentimental, que nos vai acompanhar ao longo desta crónica.
Estamos, pois, confrontados com uma nomenclatura gráfica e
foneticamente aproximada, mas diferente, para traduzir uma mesma realidade,
como veremos.
O padre Albano, no livro citado, que também adota a
designação de Nossa Senhora da Penha do Vouga – dizendo que “no seu território [Águas Boas] ficava a antiquíssima e célebre capela”,
situação que não corresponde à divisão administrativa que está carregada no Google Earth, que a coloca em Quintela
da Lapa – refere que o senhor Adelino Dias, nascido na Quinta dos Moinhos,
perto do local, “ainda se lembra da
última vez, aí por 1920, que lá foi a ladainha de Águas Boas”. E acrescenta
que “com o andar dos tempos a capela
começou a deteriorar-se, o voto foi interrompido e a imagem da Senhora da Penha
do Vouga, perto da Lapa, para lá ficou abandonada e quase esquecida, de tal
modo que os de Ferreira de Aves já pensavam em ir lá e trazê-la para a sua igreja
paroquial do Castelo”.
Portanto, a designação mais comum utilizada, quer pelo povo
de Águas Boas, quer pela diversa sinalética que se encontra a partir da
freguesia de Quintela da Lapa a indicar o local, é Penha do Vouga.
Aquilino Ribeiro, na sua narrativa, dá corpo, pois, à
sobredita memória das pessoas de Águas Boas ao referir que “o povinho de Águas Boas, a aldeia mais ao pé, alvoroçada como os
enxames sem que se perceba a causa e o moto de tais fervores, chegou ali [Penavouga] um domingo, de rebentina, arrancou a
Senhora bonita e a talha especiosa do altar para a sua igreja, depois de
escaqueirada devotamente, e levou a telha para as pocilgas”.
Já o padre Albano refere a este propósito: “Alarmados [com a possibilidade de a
senhora ir para outras paragens], porém,
os de Águas Boas combinaram, secretamente, (…) foram lá de noite e trouxeram-na
para a sua igreja, onde a colocaram em lugar de honra e continuaram [e
continuam, dizemos nós] a prestar-lhe
toda a devoção”.
De facto, no local designado de Penha do Vouga ou Penavouga,
na envolvente do robusto “fragão”, os
vestígios de construções são diversos. São, aliás, bem visíveis nas suas
faldas, sob um enorme silvado, as ruínas daquela que terá sido a capela onde se
venerou, “provavelmente desde o princípio
do mundo” [expressão de Aquilino tida como satírica por Manuel de Lima
Bastos no seu livro À Sombra de Mestre
Aquilino] a Senhora da Penha do Vouga. Nós estivemos no local e constatámos
isso mesmo. Apesar da vegetação, veem-se algumas fiadas de perpianho, de
granito bem aparelhado, denotando, pela qualidade do trabalho, o enorme e o
forte investimento que ali terá sido feito para construir um templo que
traduzisse a enorme fé do povo na senhora que ali se venerou. E o que é
espantoso é que estamos num local ermo, distante de todos os povoados
envolventes e de acessibilidade difícil. As povoações envolventes são Águas
Boas, Quinta do Cando, Moinhos do Vouga, Quintela da Lapa, Quinta de Almarigo, Nabaínhos
e demais quintas adjacentes, mas todas distando, pelo menos, um quilómetro e
meio em linha reta.
Para além das ruínas da capela, há muitas outras ruínas,
referindo Aquilino Ribeiro que “a
deslado, a fugir pelo meio dos rosmaninhos e da bela luz, ficava a casota do
ermitão, com a sua horta”, assinalando o mestre que, para este, “o pior do pior era a invernia, quando o
Vouga, ao descer dos alcantis, lembrava todos os diabos de escantilhão por ali
abaixo, e os lobos lhe vinham escarvar à porta”. E prossegue de seguida
referindo que essas temporadas deviam ser ásperas para o ermitão, “sem ver por muito tempo o nariz do seu
semelhante, e sem outra companhia além dos bichos do monte e da presença
inefável de Nossa Senhora”.
Esta descrição de Aquilino diz bem das agruras do tempo nas
Terras do Demo, a que só o “equinócio da
Primavera” vinha pôr cobro. E aí, então, começavam a dirigir-se ao templo “as procissões vistosas” idas “das freguesias dos extintos concelhos de
Fráguas e Pêra e Peva, e dos de Moimenta, Sernancelhe e Sátão, desde tempos
imemoriais, votivamente uma vez por ano, render graças à Senhora da Penavouga”.
“Vinham à Penavouga,
de cruz alçada, aldeias de muitas léguas à roda”, representando tais votos “uma promessa feita antigamente contra a
praga das lagartas” o que fazia desta capela um “altar de índole agrícola-religiosa”.
Quanto aos romeiros, “traziam
frauta [flauta], sanfona e bornal farto” e “no pequeno largo em frente da capela, depois das loas e do bródio
[comida e bebida], cantavam e dançavam”.
Importa ainda assinalar que a escassos vinte metros das
ruínas da capela se encontra uma lagareta de grande dimensão, esculpida num
grande bloco de granito.
Mas a história não ficaria bem contada se não subíssemos ao “penedal”, íngreme, que se ergue ali
mesmo ao lado.
Logo no início da subida deparamo-nos com uma gruta,
natural, com sinais nas ‘ombreiras’ de que terá sido utilizada como local de
pernoita. Depois começa a subida “à
bisarma grande”, mas o grau de dificuldade não é elevado. Pela vertente
vamos encontrando diversas “incisões
abertas a pico” e pedras de apoio, em forma de escadaria. O mestre refere,
escudado no manuscrito inédito Olympo
Mystico, que lhe serviu de principal guia, que se encontram na subida, “vários nichos, onde se abrigavam as imagens
de pedra de Santa Madalena, S. Paulo Ermitão e Santa Maria Egipcíaca”,
coroando “o cimo o passo da Ceia do
Senhor”.
Refere ainda Aquilino que “o topo do rochedo é como um terraço, talhado para a eternidade.
Espraiando a vista, os olhos embebem-se primeiro na fita tortuosa e
sobressaltada do Vouga; depois, encontram a oriente a serra da Lapa (…); a
norte, a serra da Nave; a sul, penedal, ovelhas e rebanhos de penedos esparsos,
entre o mato de sarça e de queirós, até para lá do lugar de Pinheiro e das abas
de Aguiar, até para lá, parece, da serra da Estrela, muito roixo ao fundo baço
do horizonte; a oeste, o cenóbio dolente da Fraga, ruina lacrimosa, onde Frei
Joaquim de Santa Rosa de Viterbo compôs o admirável Elucidário”. E já agora, acrescentamos nós, que bem a vimos,
minúscula, lá ao fundo, dali se vê a torre da capela de Nosso Senhor dos
Caminhos, em Rãs.
Já o rio Vouga, esse, não se vê, mas “adivinha-se, correndo escabreado entre rochas e moitas” ali bem
aos pés daquele fragão que nos proporciona uma magnífica vista de 360 graus.
Resta ainda dizer que esta “bisarma” granítica tem hoje o nome de Calhau de São João do
Deserto, estando assinalado nos mapas da Google e referir que no penedo mais
alto deste monte, na face virada para Quintela, ainda existe uma cavidade
quadrangular onde, segundo reza a memória, estaria incrustada uma escultura
granítica que, neste momento faz parte do muro do adro da igreja de Águas Boas.
Em conclusão - do cruzamento da memória do povo, com a
escrita do padre Albano no livro Terras
do Concelho de Sátão, com a narrativa de Aquilino Ribeiro na Geografia Sentimental que, entre outros,
se estriba no Olympo Mystico, um
manuscrito entretanto desaparecido, do cónego Agostinho Nunes de Sousa, mas que
o mestre teve em mãos - a imagem de Nossa Senhora da Penha do Vouga, que se encontra
e venera anualmente no último domingo de julho na Igreja Matriz de Águas Boas, foi
deslocada do ermitério de Penavouga para Águas Boas.