Rãs: Nosso Senhor dos Caminhos é muito mais do que um ritual canónico

Para os nativos da aldeia de Rãs, a festa de Nosso Senhor dos Caminhos sempre foi mais do que um evento místico carregado de uma forte religiosidade. A atração coletiva que atravessava as gentes da aldeia não se ficava pela práxis canónica.

De facto, a febre que percorria as veias de todos ia muito para além da procissão e do culminar de um trabalho árduo desenvolvido por mordomos e colaboradores diversos para que àquele cortejo nada faltasse. Ia muito além dos andores imponentes e dos enormes guiões; dos anjinhos diáfanos e dos guardas a cavalo com esporas a luzir; das bandas filarmónicas alinhadas em cadência de música sacra e dos muitos devotos em oração compungida; das compenetradas autoridades religiosas e civis e dos cumpridores das milagrosas promessas a que o Senhor correspondera.

A festa era isto e muito mais.

A festa era também o antes. A agitação da limpeza das casas e das ruas. Eram os agitados dias que a antecediam. Era o arraial. Aquela noite em que os cidadãos mais afoitos e folgazões cirandavam, noite dentro, por barracas de vinho e gasosa onde soltavam os diabos infrenes que lhes assaltavam o corpo e a mente.

Mas a festa era também o pós cerimónias religiosas. O estralejar, infindo, dos foguetes de estalaria e de tiro lançados do alto do talegre e os miúdos audazes atrás das canas e das bombas por rebentar. Eram as merendas estendidas em cima dos penedos nas toalhas de xadrez, vermelhas e brancas. Eram os cantares desafiados por concertinas e realejos à sombra de pinheiros e carvalhos. Eram as brigas violentas instigadas por vozes ensopadas em vinho, em que as cabeças abertas eram o resultado menos grave de lutas corpo a corpo travadas por entre o pó da terra ressequida. Eram os autocarros ronceiros carregados de peregrinos saciados e com a promessa do regresso no ano seguinte. Eram os megafones dos barraqueiros a desafiarem as carteiras com promessas de banha da cobra milagrosa. Eram as bandas nos coretos em desenfreada rivalidade musical acicatada por palmas e vivas dos seguidores que se deslocavam aos ritmos das batutas dos maestros.

Enfim, tudo isso era festa. Tudo isso era alimento de conversa, na aldeia, por largos tempos, já depois da festa.

Hoje, talvez menos, mas ainda há muita energia que corre e percorre os cidadãos de Rãs, todos, onde quer que estejam, onde quer que a vida os tenha levado, em Portugal, ou em outro qualquer recanto do mundo.

Hoje, talvez menos, mas quando se aproxima o domingo da Santíssima Trindade, dia da celebração da festa, neste ano da graça de 2022, a 12 de junho, há um tremor de saudade que invade os nativos de Rãs.

LINKS:

Festa de 2010 - https://letraseconteudos.blogspot.com/2010/05/ras-romaria-de-nosso-senhor-dos.html

Festa de 2012 - https://letraseconteudos.blogspot.com/2012/06/3-junho-festa-de-nosso-senhor-dos.html

AP 08.06.2022