* Comunicação efetuada no dia 13 de outubro no cineteatro
municipal de Sátão. Publicada no blog de Ascenso Simões.
Há cerca de um mês, o meu amigo Acácio Pinto pediu-me para apresentar o seu último romance.
Nessa altura, foi-me dizendo que havia nele uma parte que
queria simbolizar o tempo de venturas e desventuras, que ambos passámos entre
2005 e 2009, período em que foi concretizada uma grande reforma no sistema de
Proteção Civil.
A conversa deixou no ar o seu interesse por esta minha mais
recente vida de ensaísta, comentador e apresentador de livros, uma espécie de
ocupação pós-morte política que determinei a mim mesmo.
Aqui estou hoje, perante vós, para vos dizer o que encontrei
nas linhas que Acácio escreveu.
A primeira coisa a ter em conta, quando se inicia a
preparação da apresentação de uma qualquer peça literária, é – fazer a
escatologia do autor. Foi essa a minha inicial tarefa.
Fui às intervenções parlamentares de Acácio Pinto e olhei o
cuidado com que sempre disse e escreveu, a elaboração e a construção de frases
que não são só isso, são imagens que nos levam pelo caminho que o político,
agora romancista, se propõe fazer-nos seguir.
Nessas proclamações não está o romancista ou o contista que
hoje vos traz este livro galardoado com o Prémio Literário Cônego Albano
Martins, edição 2024. Está alguém muito atento a visões largas e interpretações
singulares, com um certo olhar de uma sociedade, de um território.
Foi exatamente a partir da sociedade sua conhecida, do
território inicial e único de onde partiu, que o autor campeou na sua obra O
Volframista, reflexo de um tempo difícil, elogio de formas de ser, confronto
com a realidade.
É também a partir da sociedade e do território, em três
tempos diferentes, que o autor segue nesta nova obra que hoje aqui descobrimos
O Leitor de Dicionários.
Há uma pergunta que gostaria de partilhar convosco – este
livro é só um romance? A minha resposta é: Pode ser ou não ser!
Para literatos mais cuidadosos, o que temos diante de nós
pode ser um romance e dois potenciais contos, podendo viver autonomamente, se
desenvolvidos, e destinarem-se a ter funções e narrativas distintas.
O corpo central, a que muitos poderão chamar de “o”
romance, anda à volta de um beirão, Alberto.
Um beirão que é um conjunto de beirões, transmontanos, portugueses que se
forjaram num país sem mundo, num futuro sem portas e janelas. Alguém que se
encana perante a inteligência identificada de um professor, gente que caminha
crescendo em conhecimento mas não desenvolvendo o espírito.
O primeiro conto desenvolve-se em torno do muito que o autor
fez enquanto exerceu as funções de Governador Civil, a transformação que ajudou
a concretizar no terreno, a forma de articular forças e meios, a gestão da
informação e a preocupação com o sucesso da operação. Neste conto, o beirão e o
seu entorno só nos aparecem na segunda parte, como que a dar sentido à
narrativa de uma intervenção de proteção civil, mas também a encontrar um termo
para o que ficara interrogado no corpo do primeiro livro.
O segundo conto, ou terceiro livro, parece, a quem lê,
alicerçado na vontade de fazer aparecer os que saem. Aqueles que rumam para
deixar a aldeia que o protagonista principal nunca abandonou, os que se formam na informalidade e na
ausência de regras e normas. Há, nas últimas páginas desta obra, alguém a quem
não incomoda o aproveitar o que é do outro, o apropriar de coisa que é mais
elevada do que aquilo que o próprio poderia algum dia conceber.
Este conto, ou fim de obra, cruza-se com a visão católica do
sacrifício e da confissão. Mas a isso voltaremos.
Acácio Pinto é um homem das tecnologias literárias. Meteu
numa bimby tudo o que andou a laborar em pensamento e conseguiu fazer o que
pouco conseguem.
Esta sua peça é um romance histórico, porque corresponde a
um período muito significativo da nossa vida coletiva, a segunda metade do
século XX; é também um romance regional, uma vez que corresponde a um olhar do
mundo a partir de um lugar que se fixa no interior norte-centro de Portugal;
revela-se romance de formação, por nos dar a conhecer o crescimento de Alberto,
as dificuldades, as contingências dos dias seguidos de construção física,
psicológica e moral; é um romance picaresco, pela natureza humilde de Alberto,
mas também, e especialmente, pela forma como desenvolve a sua forma de ser
anti-herói.
Olhando bem, trata-se ainda de um romance psicológico ao
despir Alberto, também Rui Rodrigues e Felismina, e, por fim, autorreflexivo,
quando se enleva na história de todo o segundo livro em que o autor é parte.
Não faria sentido se não fossemos à procura das influências
que são nítidas nesta obra de Acácio Pinto.
Escreve ele (pg. 20):
“Para a aldeia de Infias, o caminho era íngreme. Tinham de
subir a vila de Fornos até ao campo de futebol que se localizava no cimo da
serra da Esgalhada, próximo daquela localidade. Porém, antes da subida, na
passagem pelas ruas da vila, costumavam ter vários aliciantes. Os seminaristas,
quais pássaros fora da gaiola, contemplavam tudo à sua volta, sobretudo as
raparigas, a quem dedicavam olhares atentos e voluptuosos. Eram olhadas à
socapa e muito dissimuladamente para não concitarem a atenção dos vigilantes,
mas aqueles vultos femininos, ainda assim, ficavam-lhes bem gravados na
memória. Piscavam o olho uns aos outros e faziam discretos sinais com a cabeça
para chamarem a atenção para algumas mais vistosas. Os comentários suculentos
eram guardados para a camarata, à noite, depois do vigilante passar.”
Virgílio Ferreira sorriria perante tão interessante e
provocador parágrafo. O homem que escreveu Manhã Submersa terá imaginado muitos
rapazes a seguir pelo caminho da Serra da Esgalhada.
E se questionado Joaquim Guilherme Gomes Coelho, o eterno
Júlio Dinis, sobre se se poderia encaixar o que lemos de Acácio em peças como A
Morgadinhas dos Canaviais, ou Fidalgos da Casa Mourisca, ou mesmo em Serões da
Província, ele não deixaria de, com um alongar de braços e um expressivo
sorriso, acolher o ensejo.
Acácio caminha e provoca-nos (pp: 100 e 101):
“Cada mesa era uma montra de casacos, vestidos e sapatos
adquiridos nas mais caras casas de roupa
e sapatarias da cidade, não muito longe dali. As lojas comerciais mais
reputadas em vestuário localizavam-se na própria rua Formosa e nas ruas adjacentes,
nomeadamente, na rua Dr. Luis Ferreira, mas conhecida como rua do Comércio, na
rua Direita e na rua Alexandre Lobo. Mas havia sempre aquelas e aqueles que,
querendo sobrelevar-se aos demais, iam ao Porto, a Aveiro ou a Coimbra efetuar
as compras, sobretudo aquando das épocas festivas. E as conversas que
aconteciam nas mesas, muitas delas em tom murmurado, eram um hino à hipocrisia
e ao cinismo humanos. Era ali que difundiam muitos segredos de alcova e muitas
heresias saltitavam de boca em boca até, depois, passarem a ser voz corrente na
cidade, em conversas iniciadas por ‘ouvi dizer que’.
Esta era, muitas vezes, a estratégia utilizada para pequenas
vinganças entre famílias, colocando-se a circular informação deturpada, com o
objetivo de causar danos morais e reputacionais …”
Já em O Volframista tínhamos visto entrar Aquilino Ribeiro,
mas agora, em O Leitor de Dicionários, Acácio é mais elaborado na abordagem
crítica do social de um tempo. Acácio, como Aquilino, agarra o meio rural, mas
também o piqueno meio de cidade nanica que todas as do interior, mesmo Viseu a
maior de todas, tinham até às décadas de 1970 e 1980 do século passado.
Alberto, a personagem que sendo piquena no ser é
literariamente grande, não seria nada na obra política e urbana de Aquilino,
mas seria enorme na obra pictural e rural que nos deixou.
Miremos, por último, esta passagem (pp: 27 e 28):
“De facto, no mês de janeiro de 1966, no início do segundo
período, chegara uma carta anónima às mãos do reitor do seminário. Nela eram visadas as putativas ligações do pai de
Alberto a elementos pertencentes à célula comunista da região de Viseu.
Ante tal situação, o reitor, para averiguar os factos e
dilucidar a questão, solicitou informações sigilosas ao abade da paróquia e ao
presidente da junta de freguesia.
O pároco, que havia sido responsável pela referenciação
positiva de Alberto aquando da admissão ao seminário, respondeu ao reitor
dizendo desconhecer ‘quaisquer ligações do visado a pessoas revolucionárias ou
contra o regime’ e acrescentou, ainda, que os pais e familiares eram ‘católicos
praticantes e honrados cidadãos da aldeia, sempre dispostos a ajudar aos mais carenciados’.
Já o presidente da junta de freguesia, numa carta extensa e
detalhada, corroborou todo o conteúdo da carta anónima, cujos termos, de tão
idênticos aos da missiva, foram uma explícita traição ao pretendido anonimato.
Desta feita, porém, o autarca colocou mais uma nota, esta ainda mais corrosiva,
de modo a tornar a situação inequívoca quanto ao desenlace que ele pretendia
que ocorresse. Dizia: ‘Saiba o senhor reitor que o senhor vereador da câmara,
que aqui reside na freguesia, e o representante da PIDE no concelho, atestam
tudo aquilo que acabei de referir’.“
Da obra de Acácio Pinto, até pelo seu tempo, não poderá
dizer-se que se aproxima do neorrealismo, mas não deixa de encaixar nas
temáticas de Fernando Namora como este último fragmento bem pode demonstrar.
A política, como elemento definidor de um romance onde
entram diversas realidades sociais e excecionais dramas do Homem, foi, em
Namora, de forma mais explicita ou mais encoberta, a permanência mais
relevante.
Não seria impossível que Fernando Namora fosse um gémeo
criativo de Acácio Pinto, não é impossível ver em O Leitor de Dicionários a
linha narrativa de Retalhos da Vida de um Médico.
A obra tem um conteúdo dramático enorme. Alberto suicida-se;
Rui Rodrigues suicida-se; Felismina, a mulher com quem o principal protagonista
se casou sem se casar de facto, suicida-se socialmente.
Podia ser de outra forma? Não podia!
Se Rodrigues não tivesse escolhido a pena máxima não se
tinha sabido do suicídio social de Felismina; Se não se soubesse o que esteve
na base dos atos praticados por Felismina, não teríamos um termo tão drástico
na vida de Alberto.
Mas se Alberto não tivesse escolhido morrer com uma
encenação tão terrível e ao mesmo tempo tão cinematográfica, não teríamos tido
o autor presente ao longo do segundo livro a que muitos chamarão primeiro
conto.
Um grande final faz um grande livro. Este, o que hoje
apresento, é um grande livro que foi cuidadosamente construído por um grande
escritor.
Sátão, Outono de 2024
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