O volframista, que venceu o prémio literário Cónego Albano, em Sátão, teve a sua génese em histórias antigas

Da esquerda para a direita: Helena Castro (júri); Acácio Pinto; Carlos Paixão (júri); Alexandre Vaz (presidente da Câmara de Sátão).

A propósito da entrega do prémio literário, Cónego Albano Martins de Sousa, promovido pela Câmara Municipal de Sátão, a Acácio Pinto, que teve lugar no dia 20 de agosto, aqui se deixa o texto da intervenção:

«Sim, estou feliz. Gostei muito, mesmo muito, de ter sido o autor premiado nesta edição de 2022 do concurso literário cónego Albano Martins de Sousa.

De ter conseguido, através das palavras de hoje, convencer o magnífico júri das virtudes de um texto informe fermentado num ontem já bem distante. Fermentado num tempo em que eu passava as noites de inverno à lareira, à luz da candeia, a ouvir adivinhas e histórias. Algumas delas repetidas até à exaustão, outras que me eram exaustivamente escondidas, deixando-me com água na boca.

Estas eram história tabu. Só eram conversadas depois de me empurrarem para a enxerga fria com uma botija de água quente enfiada numa meia de lã.

Era assim. Tal ontem como hoje, afinal, há temas a que só os adultos podem aceder. Há pastas em que só os níveis superiores de qualquer hierarquia podem entrar.

Os mais novos, como era o meu caso e o do meu irmão, quando muito, apanhávamos só umas pontas do emaranhado dessas meadas.

É dumas pontas de uma dessas meadas que se trata nesta obra. N’O volframista. De desvendar e dar corpo, através da literatura, a essa arcana história que perpassou pelos labirintos da minha infância. Falando-vos, assim, de paisagens, de pessoas e de vidas noutro tempo.

E de quais paisagens?

Pois bem, temos um mergulho numa geografia, num território, que nos é muito peculiar, creio que a mim e à generalidade dos presentes. Chamem-lhe o que quiserem. Beira Alta, Terras do Demo, Serras da Nave, da Lapa, do Facho ou do Seixo. O que quiserem.

E quais vidas?

O que temos n’O volframista são vidas de pessoas em permanentes e singulares peregrinações.

Vistam-lhes as roupas que vos aprouver e chamem-nas pelos nomes que quiserem. O narrador diz que se chamavam Abel, Manuel, António, Natário e François. Celestina, Mariana, Michèle, Marquinhas ou Nicole. Só para vos citar algumas personagens.

Mas não tenham problemas em chamar-lhes outros nomes, se acharem que estes estão ficcionados.

E então qual foi, para o autor, o detonador de tudo isto? De toda esta história?

Como tudo na vida. Tudo isto começou a partir de um facto inspirador: A fuga que um cidadão português efetuou, há quase oito décadas, para o estrangeiro. Estrangeiro que nesse tempo era muito mais distante de Portugal do que é hoje. Fosse qual fosse o país de destino.

Foram essas pontas da meada, essas conversas encriptadas, à lareira, essa fuga que detonou este processo de escrita.

Perguntarão: Qual cidadão? Quando e para onde fugiu? Qual o motivo?

Propositadamente, não detalharei mais pormenores sobre esse cidadão, a não ser que era do concelho de Sátão e a quem, na obra, foi dado o nome de Abel Fernandes. A fuga, essa, foi para França, após a Segunda Guerra Mundial.

Sim, bem sei, que o verdadeiro exílio teria sido cá dentro, na sua terra. E teria sido bem mais duro. De frente para os homens e para a justiça. Cumprindo na sua terra pelos crimes, infrações e contraordenações. Contudo, desde sempre, a fuga se tem constituído como um dos precípuos desenlaces quando a desregulação das vidas sobe ao palco da comédia humana.

A causa para essa fuga, esse exílio, foram negócios, negócios de volfrâmio que não correram bem, como facilmente se depreenderá do título, O volframista. Foram noitadas de prazer e ócio. Foram muitos atropelos e desmandos. Excessos que acompanham, tantas vezes, os homens, nesta sua, nesta nossa, deriva terrena, a troco de mais e mais poder e de mais e mais dinheiro.

- “O dinheiro é o Deus da Terra, Abel”, dizia tantas vezes o taberneiro, Manuel da Fonseca, enquanto bebia meio quartilho, precisamente, com aquele que é o nosso, o vosso, Abel Fernandes.

Portanto, embora estejamos perante um acontecimento evidenciado por uma fuga, logo um facto verdadeiro, toda a demais narrativa é ficção.

Ou mais bem dito, é quase, quase-ficção.

É que na viagem que espero que venham a efetuar dentro de algum tempo, após a edição da obra, colidirão com várias personagens verídicas e outras verídicas apresentadas com nomes fictícios, e com territórios imaginários apresentados com nomes verídicos. Logo, coloquem a ficção e a realidade onde mais vos deleitar. Nem o narrador nem o autor lá estarão para vos vigiar. Convido-vos, pois, ao exercício da vossa liberdade de leitores.

Vereis que, sem esforço, estareis a imaginar trajetos bem reais por ruas, aldeias ou vilas de todos os dias. Locais do nosso ontem e do nosso hoje.

Concluireis, presunção minha, que não importa qual é a latitude da Aldeia dos Rosmaninhos, do concelho de Santos Idos, das Minas de Lugares ou das Minas das Vinhas, territórios âncora desta narrativa. Tampouco qual é a longitude de Vilar do Paiva, de Lamas do Vouga, de Vilar da Beira, do Torgal ou de Sesmilo.

Se vos servir de alguma coisa, dir-vos-ei que o narrador confessou que percorreu trilhos, caminhos e estradas de Sátão, Aguiar da Beira, Rãs, Viseu, Tojal, Vila Nova de Paiva, Lamas de Ferreira de Aves, Avelal e sei lá mais o quê.

E palmilhou todos esses espaços num tempo em que a vida, tendo também poesia, tinha sobretudo, sobretudo muita prosa dura. Percorreu-os, quiçá, mesmo antes de ter nascido, através de leituras diversas e de audiências à memória feitas por tantos amigos, alguns deles aqui hoje presentes, como referi no início, e a quem de novo agradeço.

Percorreu-os num tempo em que a presidir ao conselho, mas ao conselho onde se sentavam os ministros do império, estava o censor e autoritário António de Oliveira Salazar. Num tempo em que as Terras do Demo eram calcorreadas pelo seu criador, o nosso conterrâneo Aquilino Ribeiro. Num tempo em que lá mais a norte, na Grande Bretanha, dominava Churchill, que deu guarida a De Gaulle, aquele que haveria de se consagrar como o libertador da França, que Pétain tinha colocado sob o jugo do ominoso Hitler.

Todas estas personagens, históricas, com quem se confrontarão durante a leitura, e os factos a elas associados, foram tratados da forma mais rigorosa que me foi possível. Com base em fontes documentais.

Esse foi um tempo em que em Portugal o interior ainda tinha uma demografia jovem e pujante e que ainda aumentou mais com a atração que as regiões mineiras, localizadas no interior, começaram a exercer sobre as pessoas. É que nas minas a remuneração era o dobro daquela que se pagava na agricultura e nas fábricas.

E esse êxodo das atividades agro-pastoris, fabris ou da pesca, foi mais uma das causas que contribuiu, nos anos 40 do século XX, para provocar em Portugal uma grave crise alimentar, que o “providencial” Salazar, qual pai da Pátria, resolveu com senhas de racionamento.

Mas essa ganância, de ganhar mais e mais, incumprindo-se, tantas vezes, com as condições de segurança e higiene no trabalho, em simultâneo com um Estado permissivo, gerou milhares e milhares de mortes de mineiros na flor da idade. Esse veneno, o pó da mina, ceifou tantos e tantos portugueses, não na Guerra, dessa Salazar “livrara-nos”, dizia-se, mas nas galerias do nosso subsolo a extrairem a volframite que alimentava as máquinas de guerra inglesas e alemãs, por esse mundo fora.

Volframite, o tal minério que era utilizado para o fabrico de carros de combate e toda uma vasta gama de armamento ligeiro e que em Portugal abundava, tornando-se mesmo o nosso país no principal exportador europeu de volfrâmio ou tungsténio, apelidado, então, de ouro negro.

[Aqui foram mostrados duas amostras de volframite, uma das minas da Panasqueira, pertencente ao autor e outra das Minas de Lagares, também conhecidas por Minas da Queiriga, no concelho de Vila Nova de Paiva, esta última cedida pelo professor Carlos Gil]

Mas é tempo, por hoje, de concluir.

De voltar, penhoradamente, a agradecer o prémio, de saudar a Câmara, de agradecer a todos quantos comigo colaboraram e de vos dizer que a literatura é uma das mais importantes manifestações culturais ao nosso dispor. Através da palavra, ela confere-nos todos estes e tantos outros recursos e possibilidades. De sermos livres ou de nos amarrarmos. De falar verdade, ficcionando ou de ficcionar a realidade. De partir e chegar. De chegar e voltar a partir. De sermos Ulisses ou Penélope. Eneidas ou Sísifo, Apólo ou Afrodite. Num tempo qualquer, em qualquer lugar.

Através da literatura, – qual jangada de pedra – deixo-vos pois este enredo, deixo-vos toda esta trama. Esta urdidura ficcionada, porém onde não falta alguma verdade.

E se “não há machado que corte as raízes ao pensamento”, como tão bem escreveu Carlos de Oliveira e Manuel Freire cantou, será que, por mais ficcionada que seja, pode haver literatura sem verdade?

E porque não fujo, respondo a esta pergunta com uma quadra de Aleixo, esse grande poeta popular português, e assim termino,

Para a mentira ser segura

E atingir profundidade

Tem de ter à mistura

Alguma dose de verdade.

Muito e muito obrigado a todos.

 

Acácio Pinto | 20.08.2022»