Ana Catarina Mendes em entrevista ao SOL | ‘PS tem conceção da Europa muito diferente da que tem a direita’

Entrevista ao SOL
Por: Manuel Agostinho Magalhães | 21.11.2015
A primeira vice-presidente da bancada do PS esteve em todas as negociações dos acordos à esquerda e vai ser a responsável pelo PS, se António Costa for primeiro-ministro. Tem uma confiança inabalável na solidez da “coligação” com BE, PCP e ‘Verdes’.
O Presidente da República deu sinais de que pode prolongar o governo de gestão. O PS está preparado?
O Presidente precisa de ter a noção de quais são as suas competências. E a sua principal competência é manter a cooperação institucional com os outros órgãos de soberania. Tivemos a rejeição do programa de governo, que ditou a sua demissão. Compete agora ao Sr. Presidente da República, tão rápido quanto possível, cumprir a Constituição e indigitar um novo governo, liderado pelo PS, com o apoio de uma ampla maioria parlamentar.
Mas o PS conforma-se, se o PR não der posse a António Costa?
Não acho que esteja em causa esse cenário. E será muito prejudicial ao país se mantivermos mais tempo um governo de gestão, sem um Orçamento do Estado aprovado. Este cenário, em termos constitucionais e políticos não faz sentido nenhum. Não há nenhuma crise política neste momento em Portugal. Há uma maioria parlamentar que suporta um governo do PS e o PR deve olhar para essa nova realidade e perceber que a Constituição é para cumprir. Por isso mesmo não coloco esse cenário.
O prolongamento do governo de gestão não é constitucional?
Constitucionalmente temos aqui duas situações muito concretas: a primeira é que o PR neste momento já não tem o poder de dissolver a AR; a segunda é que a legitimidade desta AR decorre das recentes eleições e não pode ser dissolvida nos primeiros seis meses. Dito isto, estão criadas todas as condições para que haja um novo governo em Portugal, o que significa que não há nenhuma razão para manter em funções um governo de gestão. Acrescento uma questão política: a Comissão Europeia tem pedido à exaustão para que o governo demitido apresente um rascunho que seja do Orçamento do Estado, o Governo insiste em não o fazer. Adiar a existência de um Orçamento aprovado e colocar o país em duodécimos, isso sim é criar uma crise política em Portugal.
Acha legítimo que o PR, tendo dúvidas, peça para o PS aprofundar os acordos com o PCP e o BE?
Acharia legítimo se não houvesse acordos assinados, se não tivesse havido uma rejeição do governo do PSD e do CDS, se não houvesse uma maioria parlamentar que disse claramente que é preciso uma nova política em Portugal. Acharia legítimo se não estivessem cumpridas rigorosamente as condições objetivas para a formação de um novo governo.
Quais são?
Os quatro partidos à esquerda foram capazes, por impulso do PS, de dialogar e chegar a um consenso em três matérias essenciais que têm como chapéu a inversão da política de austeridade. Neste núcleo essencial do acordo cabe o aumento do rendimento das famílias, a diminuição da carga fiscal e a criação de condições e de apoio às pequenas e médias empresas para que se possa criar emprego em Portugal. O que compete ao PR não é interpretar se gosta ou não do acordo, não é interpretar se gosta mais deste ou daquele partido, mas sim avaliar se estão criadas as condições para o desígnio que o próprio impôs durante a campanha eleitoral de haver um governo maioritário. Ora os 122 deputados que estão a suportar o governo do PS conferem ao PR as condições objetivas para que o PR dê posse.
Os acordos deixam muita coisa em aberto. Há uma agenda que se esgota e a partir daí fica apenas o diálogo?
Há uma agenda na perspetiva de uma legislatura. Há um conjunto de medidas que não se vão conseguir fazer no próximo ano. Há outras que sim. Eu digo que nos põe em permanente teste porque nos desafia todos os dias a limar as arestas das divergências, sem nunca perdermos a identidade de cada um dos partidos. Aliás, acho que é mesmo importante que haja serenidade, tranquilidade, na forma como se olha para esta novidade política no quadro do sistema político português. E devemos saber estar à altura daquilo que são soluções que se encontraram em vários países da União Europeia.
Há outros países europeus com soluções de governo construídas com dois partidos anticapitalistas?
Claro que há. Os partidos comunistas por toda a Europa que se coligaram de alguma maneira tornaram-se eurocomunistas e isso produziu também uma transformação nos partidos comunistas desses países.
A reversão das concessões dos transportes é um ponto essencial para o PCP, mas está condicionada financeiramente. O acordo com o PCP pode manter-se se ela não for possível?
Os acordos foram celebrados com base em seriedade, transparência e rigor. Isso implicou um papel muito importante do Professor Mário Centeno que fez as contas e explicou essas contas. Estou absolutamente convencida que com o decorrer da legislatura vamos conseguir encontrar soluções. Não se esqueça que o PS também criticou a forma como foram privatizados os STCP e a Carris, em fim de mandato. Não acho que isso seja um ponto para nos dividir, é um ponto para conversarmos e encontrarmos uma solução.
E houve uma conversa suficientemente franca para não haver surpresas?
Sim, tem de haver. Quando se fazem negociações não pode haver nenhuma surpresa.
Isso pode ser aplicado ao restante conteúdo dos acordos?
Os acordos refletem o núcleo essencial, não quer dizer que não se possa ir mais além que aquilo que está escrito durante a legislatura. Por isso eu digo que a cultura do diálogo e do compromisso é um permanente teste que temos de ter na gestão de uma coligação. Como nas relações pessoais. E o sucesso dos acordos passará muito por haver uma boa governação.
Depende também muito da situação financeira. O cenário de Mário Centeno não é um wishfull thinking?
Acredito na credibilidade dos números de Mário Centeno. A sua experiência deixa-me a garantia que as contas estão bem feitas e que saberá lidar com as contingências.
A senhora esteve nas reuniões de negociação. Quando começou a achar que era possível o acordo?
Desde a primeira reunião com os nossos parceiros.
Durante a campanha, revelou o seu ceticismo com a proposta de Catarina Martins. O que mudou?
O que mudou foi os três partidos à esquerda do PS terem sabido fazer a leitura da vontade dos cinco milhões de eleitores que votaram neles e que pediram aos seus representantes na AR. Acho também que nós PS nunca enganámos os portugueses: desde as primárias o António Costa anunciou o fim do arco da governação.
Mas as pessoas não acreditaram…
As pessoas nunca acreditaram que era possível esse cenário. E por isso se gerou ceticismo e desconfiança. Eu própria, durante a campanha, achei por vezes que isso era impossível.
O António Costa resistirá como líder do PS se não for empossado primeiro-ministro?
Costa não agiu por querer ficar à frente do PS ou ser primeiro-ministro a todo o custo, mas para garantir a sobrevivência do país e de as pessoas terem melhores condições de vida. E estou convencida que se tivermos uma outra atitude à mesa dos conselhos europeus conseguiremos também provocar algumas transformações na Europa.
O programa de governo aprovado na Comissão Nacional do PS é um documento que vincula o BE, o PCP e o PEV?
O programa de governo é o programa eleitoral do PS com as alterações incorporadas decorrentes dos acordos com esses partidos. É um documento que vincula todos os partidos.
Uma questão sobre a forma: acordos assinados em separado, em segredo, de pé, junto a uma porta de emergência. Quem não quis ficar na fotografia?
Não foi junto a uma porta de emergência, foi numa sala do PS no Parlamento. Foi a opção de simplificar as coisas, mas não significa que não haja solidez nestes acordos. E não tenho essa indicação [de que alguém não quis ficar na fotografia].
A direita sinalizou que não é possível contar com o seu voto, mesmo em questões do Tratado Orçamental e nas regras europeias. Acredita?
Espero que seja apenas uma reação momentânea à novidade. Mas o PS tem uma conceção da Europa muito diferente da conceção da direita. PSD e CDS pactuaram ao longo destes quatro anos sempre com a austeridade e foram subservientes. O PS defende uma participação mais ativa e transformadora e uma leitura inteligente do Tratado Orçamental.
O PS precisa dos votos do PSD para governar nos assuntos europeus e na defesa?
Não me parece que precise. Vamos ver.
Como funciona um governo de esquerda nestas condições? Com muita negociação no Parlamento?
Com uma negociação permanente no Parlamento.
Apareceu no passado sábado a apoiar Sampaio da Nóvoa. Porquê só agora?
Já tinha decidido apoiar Sampaio da Nóvoa. Mas entendi que durante as legislativas não devia misturar as duas realidades. E depois a prioridade foi chegar a acordo.
É uma posição institucional?
É um apoio individual. O partido deu liberdade de voto.
Maria de Belém tem o seu voto se passar à segunda volta?
Tem.
Marcelo Rebelo de Sousa veio dizer que o país não precisa de mais eleições. Acha que como Presidente, ele honraria essa declaração?
Sim.